Crip Camp: Revolução pela Inclusão
Eu queria fazer parte do mundo, mas não via ninguém como eu
Por João Lanari Bo
Netflix
James Lebrecht, codiretor do documentário “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” com Nicole Newnham, é um designer de som que nasceu com espinha bífida, e deveria viver apenas algumas horas após seu nascimento. Ele não só sobreviveu a essa expectativa, mas aos 14 anos começou a frequentar o acampamento de verão Jened, não muito longe de Nova York e vizinho à… fazenda de Max Yasgur – território mítico-musical onde aconteceu, em agosto de 1969, a celebração das celebrações, Woodstock. Em Jened, James não apenas conheceu pessoas portadoras das mais variadas deficiências – como poliomielite, paralisia cerebral, problemas de mobilidade e deficiências sensoriais – mas também pôde interagir com mentores que não infantilizavam adolescentes com deficiência: ao contrário, os tratavam como adolescentes normais, curiosos e hormonais, quer dizer, dotados de sexualidade e desejos. O acampamento foi fundado no início da década de 50: em meados dos 60, dois visionários egressos do mundo “hippie”, Jack Birnbaum e Larry Allison, se juntaram numa empreitada utópica para gerenciar Jened fora das “convenções habituais”. Para os campistas, foi uma experiência radical e transformadora.
Uma experiência que se transformou em ação política, um movimento de “disabled civil rights” que, a exemplo do “civil rights” de Martin Luther King nos anos 60, bateu fundo nos EUA. Vários dos ativistas na linha de frente do movimento estavam no “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”. Denise Sherer conheceu Neil Jacobson, com quem se casou mais tarde, no acampamento. “Uma das conselheiras me ensinou a beijar. Uma das melhores terapias físicas de todos os tempos!” Neil lembra com uma risada. Denise tem paralisia cerebral: tornou-se uma respeitada acadêmica e escritora, mãe e avó; Neil, também com paralisia cerebral, foi vice-presidente de um banco e hoje tem uma consultoria de inovação em negócios, especializada em promover oportunidades para pessoas com deficiência. Denise narra rindo às gargalhadas sua primeira experiência sexual com um motorista de ônibus: o humor é a marca do casal, aliás é também a marca do filme, sobretudo na primeira parte – o episódio de limpeza dos “chatos” que infestavam pelos púbicos e colchões é hilariante. Neil resume: “ao longo da minha infância, meu corpo me causou dores físicas e emocionais. Em Jened, pude ver que todos são bonitos e que meu corpo pode ser agradável para outras pessoas e para mim”.
Uma figura-chave em Jened foi uma conselheira de 23 anos, Judy Heumann: teve pólio quando tinha 18 meses, tornou-se uma ativista incansável, trabalhou nas administrações Clinton e Obama, além do Banco Mundial, e militou na esfera internacional. Ela é um dos principais eixos estruturantes de “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”: quando estudante organizou passeatas e protestos, exigindo o acesso às salas de aula por rampas e o direito de morar em dormitório. Com ela, o documentário dá um salto e torna-se eminentemente político. Em 1977, Judy foi uma das líderes da ocupação da filial do Departamento de Saúde (nos EUA, Ministério da Saúde) em São Francisco, que durou 28 dias, enfrentando dificuldades de toda ordem – sem ventiladores ou cateteres, tetraplégicos dormindo no chão, alguns em greve de fome prolongada. O FBI tentou isolá-los, desconectando os telefones do prédio; os ocupantes surdos mantiveram a comunicação com o exterior usando LIBRAS. A pressão era pela assinatura da seção 504 do “Rehabilitation Act” de 1973, que viabilizaria investimentos em acessibilidade e empregos para deficientes. Califano, Secretário de Saúde do Governo Carter, acabou assinando: mas a luta continuou, manifestantes-cadeirantes subiram as escadas do Capitólio carregando suas cadeiras; somente em 1990 Bush (pai) assinou o “Americans with Disabilities Act”, que proibiu discriminação em empregos com base em deficiências, estabeleceu parâmetros para que empregadores fornecessem acomodações razoáveis aos funcionários com deficiência e impôs requisitos de acessibilidade aos prédios públicos. Em 1998, foi assinado o “Assistive Technology Act”, que complementou o Ato de 1990 e definiu tecnologia assistiva como “qualquer item, peça de equipamento ou sistema de produto … que é usado para aumentar, manter ou melhorar as capacidades funcionais de indivíduos com deficiência”. A batalha que começou no “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” Jened, pelo menos no campo legislativo, foi vencida.
“Eu sou um fazendeiro. Não sei falar para um grupo de vinte pessoas, quanto mais para uma multidão como essa. Mas eu acho que vocês provaram algo ao mundo, não apenas à cidade de Bethel, ou ao Condado de Sullivan ou ao estado de Nova York; vocês provaram algo ao mundo inteiro” – quem assistiu “Woodstock” lembra-se da voz metálica do fazendeiro Max ecoando nas 400 e tantas mil pessoas presentes na celebração musical. A poucos quilômetros, no acampamento de verão para deficientes, Jened, a celebração era outra: alegrias euforicamente profanas e promissoras que uma geração de deficientes descobria extasiada.