Com Amor e Fúria
Amor à flor da pele
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2022
No entanto, assistir ao filme é como fazer uma viagem aos estados do ser erótico: o desejo de intimidade com o outro; a dolorosa e excitante consciência de que ele está tão perto de mim, mas distinto; ser arrastado para uma relação com o outro onde perco o sentido dos meus próprios limites; e a estranha perda de proporção em que grandes coisas escapam do horizonte da minha consciência enquanto pequenos eventos são arenas para um universo de sentimentos (Laura Marks)
O cinema de Claire Denis é muitas vezes definido como um cinema físico, onde os personagens e seus corpos assumem uma proeminência perturbadora diante do espectador, moldada por uma câmera intrusiva que capta a intimidade o mais próximo possível da pele e dos rostos. Claro, por físico entende-se também as palavras, afinal de contas também objetos acústicos produzidos por dispositivos fisiológicos – fisiologia envolve a compreensão das funções de células, tecidos, órgãos e sistemas de organismo, bem como a interação entre eles e a importância para a sobrevivência. “Com Amor e Fúria”, lançado em 2022, deu a Claire o Urso de Prata no Festival de Berlim: é mais um filme onde a diretora exercita uma intensificação física dos momentos dramáticos, como se o mundo e as pessoas que nele circulam estivessem num estado de urgência. A fisicalidade contribui para a sensação de suspense, sobretudo do meio para o final da história: a qualquer momento pode ocorrer um transbordamento dos corpos – o apartamento em que moram os protagonistas, Sara (Juliette Binoche) e Jean (Vincent Lindon), conta com um terraço propício e tentador para saltos mortais. Esta seria uma solução óbvia, que não interessa à diretora: o que interessa são os pequenos eventos, arenas para um universo de sentimentos.
O enredo é um triângulo amoroso, que se desdobra em um thriller de infidelidade. Uma mulher e dois homens: a intensidade com que é narrado e o isolamento a que são confinados os atores na maior parte do tempo, exacerbado pelos closes, provoca um mal-estar que parece se impregnar nos objetos. Em uma palavra: claustrofobia, uma espécie de bolha dramática que se quer impermeável a influências do exterior. As contradições, entretanto, afloram nos breves instantes de hesitação: olhares, sorrisos, expressões afetivas, todos os sinais físicos sutis e microscópicos que Sara revela, concorrem para sugerir a cisão interna que a aflige, encurralada entre sentimentos destrutivos da relação com Jean e o desejo obsessivo por François (Grégoire Colin), o antigo amante que reaparece depois de dez anos. Sara quer se libertar, mas quer preservar seu desejo absoluto, que preza a imanência da relação com Jean, mas deseja a turbulência do reencontro com François. Nessa ótica, “Com Amor e Fúria”, entre palavras e corpos, amores expressos e tumultos transbordantes, propõe-se a conduzir o espectador a um não-lugar, a um desamparo.
Os próprios olhos funcionam como órgãos de tato: esta também é uma citação extraída de Laura Marks, que cai como uma luva nesse filme de alta voltagem. A performance dos personagens nos momentos agudos de atividade sensorial, como nas cenas de sexo, faz com que as imagens sejam percebidas como uma presença material, em vez de uma engrenagem representacional facilmente identificável em uma roda narrativa. Se o tempo todo a narrativa remete ao passado – uma relação enterrada no passado que ressurge, com fúria – não há como escapar que o ato de existir, conquanto individual e ladeado por abismos íntimos, está fadado à afetividade múltipla das relações com a realidade, onde se inserem, para o bem e para o mal, a angústia da influência dos eventos passados. Quando você ama alguém, isso nunca desaparece completamente, exclama Sara, confessando a bifurcação dos seus amores, uma incerteza que pode desencadear traição, destruição de si mesma ou dos outros. Uma alternância, enfim, de desejos e emoções, brutal e feliz, sensual e amarga, triste e misteriosa.
“Com Amor e Fúria” é, em última análise, um filme atlético, pela musculatura sentimental que exibe. O que está em jogo não é a crise do casal, ou o desejo bipartido de Sara, ou a expectativa dos homens que a rodeiam: é mais do que isso, é a espessura do real, captada em pulsações que fluem de alguma maneira, contraditórias, mas também complementares. Algo treme e pulsa no ar que nos envolve – partículas elementares que se chocam e retornam em movimentos díspares, eventualmente harmônicos, mas sempre imprevisíveis.