Cidade dos Mortos | T01
Cidade dos Mortos ou a epidemia viralizada!
Por João Lanari Bo
Netflix
Não deu outra: uma série russa de oito episódios estourou nos circuitos da Netflix nesse final de 2020 fatídico, batendo as poderosas produções americanas e atualizando o modo simbólico de recepção das epidemias dramatizadas, assunto batido nas telas e telinhas. A série “Cidade dos Mortos”, produzida em 2018 e exibida inicialmente na plataforma Premier do país natal, custou apenas 1 milhão e meio de dólares ao provedor de streaming! Sim, o momento é fulgurante, por óbvio – ao tédio dos espectadores que decidem monocraticamente o que ver nas plataformas soma-se a ansiedade contagiante do vírus real, Covid-19. Ficou quase irresistível, afinal, o que poderia ser mais relevante nesse ano de incertezas sanitárias do que uma série sobre uma epidemia mortal?
Em “Cidade dos Mortos” (“Epidemia” no original, “To the Lake” nos EUA) um estranho vírus está se espalhando com uma fantasmagórica rapidez, pela Rússia toda, incluindo Moscou. Seus sintomas incluem tosse com sangue e olhos brancos vidrados, chegando ao limite da abstração dos corpos – que, felizmente, não se tornam zumbis. Parece que a única maneira de escapar desse cenário apocalíptico é fugir das grandes cidades, e no caso dos principais protagonistas, da capital. A meta é chegar no oblast de Arcangel, bem no norte gelado, perto da fronteira com a Finlândia, onde paira um lago e um abrigo. Mas a odisseia, é claro, apresenta-se repleta de sobressaltos, surpresas e armadilhas, pois o país está debaixo de uma desordem instaurada, as pessoas estão apavoradas. Os militares (e as milícias) estão em toda a parte, obcecados com sua missão asséptica de varrer infectados, equipados para isso com modernas e compactas Kalashnikov, a arma mais letal e mais produzida da história, usada por mais de 50 exércitos nacionais, mercenários, guerrilheiros e terroristas.
Mas, estamos na Rússia: o martírio dos personagens é um dado concreto da realidade, diria Lênin. Nos tempos do cinema silencioso do início do século 20 os filmes russos invariavelmente não seguiam o script do “final feliz” e terminavam com a morte de heróis e heroínas (a revolução de 1917 fez o possível para mudar esse paradigma). O fim do comunismo e a virada para o capitalismo selvagem nos anos 1990 forneceram nova munição aos numerosos adeptos da ficção científica pós-apocalíptica. Como reza o senso comum da internet, pelo menos no Ocidente, a Rússia aparece (quase) sempre nas telas como um país cinzento, frio e triste. No caso em questão, figuras primitivas e bizarras se somaram ao frio e ao cinza, como um padre ortodoxo ex-mecânico de carros morando no meio do mato, ou uma mulher igualmente isolada do mundo disposta a prender pessoas em um porão escuro e estuprar um homem amarrado na cama. E, ainda sob o cenário cinzento, um núcleo dramático que esquenta a trama de “Cidade dos Mortos”: o protagonista principal, Serguei, luta para salvar sua nova esposa e sua ex-esposa do turbilhão da onda viral e … encontrar o equilíbrio não é fácil. A ex o manipula através do filho, enquanto a atual acusa uma progressiva ausência psíquica (as duas são encarnadas por estupendas atrizes, Maryana Spivak e Viktoriya Isakova).
Quem produziu a série foi a Gazprom-Media (uma poderosa subsidiária da não menos poderosa empresa de extração de gás, Gazprom, um dos esteios da administração Putin). Grupos de militares (e milícias) exterminando sistematicamente populações inocentes, infectadas ou não, obviamente preocuparam o governo, cioso das repercussões negativas, domésticas e internacionais: afinal, a Rússia politicamente é o que os cientistas sociais chamam de “democracia administrada”. Não faltou, sobretudo nas redes sociais, quem enxergasse na popular série alusões à Unidade Móvel de Propósitos Especiais, conhecida pelo acrônimo OMÓN – destacamentos da polícia russa responsáveis por manter a ordem em situações que requerem reforços adicionais. Criada em 1979 para combater eventual ataque terrorista durante as Olimpíadas de Moscou de 1980, essas forças estão presentes em todas regiões administrativas da Federação Russa, atuando contra distúrbios, manifestações e vandalismo, incluindo patrulha de ruas e operações de tipo militar ou paramilitar.
A memória do dramático episódio de Chernobil, quando as forças da OMÓN atuaram como liquidantes no cenário pós-desastre nuclear, está viva e forte na mente dos telespectadores. Na “Cidade dos Mortos”, soldados e milicianos violentos aparecem nos primeiros episódios, mas esporádicos, em grupos pequenos: no quinto, com a intervenção militar ostensiva, uma narração (ao que tudo indica solicitada pelo Ministério da Cultura russo) informa que esses grupos são ilegais e não representam o governo. O episódio chegou a ser suspenso em dezembro de 2019, na sequência em exibição na plataforma russa, para sobressalto do realizador da série, Pavel Kostomarov – mas reapareceu uma semana depois, sem “nenhum frame” alterado, como atestou o diretor. Naquela altura o então Ministro da Cultura, Vladimir Medinsky, foi categórico: não há censura em nosso país. Em janeiro de 2020, entretanto, o Ministro caiu junto com todo o gabinete do Primeiro-Ministro Dmitri Medvedev, conhecido como “Robin” (Putin seria o “Batman”), aquele que se prestou a um revezamento presidencial sui generis em 2008-12.
Sublinhe-se que Kostomarov é um documentarista de mão cheia, habituado a produções críticas do poder estabelecido: em 2012 codirigiu Srok (“O prazo”), voltado às manifestações anti-Putin no inverno de 2011-12, e, quatro anos depois, fotografou “Meu amigo Boris Nemtsov”, filme sobre o principal opositor de Putin, assassinado a céu aberto a poucos metros do Kremlin, em 2015. É no quinto episódio da série, suspenso inicialmente e depois liberado, que a ficção sai do protocolo epidêmico e adentra o terreno minado da fábula política. Em uma das aldeias onde soldados organizam deportações e eliminação de infectados, uma médica, Olga, organiza a resistência. A atriz é a popular Anna Mikhalkova, filha do não menos popular ator e diretor Nikita Mikhalkov, amigo de Putin e herdeiro de uma poderosa linhagem cultural, na URSS e pós-URSS (seu pai, poeta e autor de livros infantis, foi condecorado por Stalin e Putin). Olga pontifica: “não vamos deixar isso acontecer!”. Determinada, monta um exército de Brancaleone formado por idosos e alcoólatras para libertar os deportados. A ironia está no casting da atriz: desde 2002, Anna Mikhalkova é uma das apresentadoras do programa infantil da TV Spokoynoy nochi, malyshi! (“Boa noite, crianças”), transmitido todas as noites da semana, no ar desde 1964 e irremovível diante de todas as turbulências da história soviética e pós-soviética.
Para cativar o espectador, esteja ele/ela no sofá saturado dos espectadores compulsivos ou sob o grosso edredom de penas de pato dos que colam a experiência audiovisual ao sono, o roteiro de “Cidade dos Mortos” desdobra-se em surpresas e imprevistos, desestabilizando até mesmo os solitários empedernidos do binge-watching, ou seja, a turma que não se contem e assiste até seis episódios seguidos, in a row! Esse fenômeno comportamental da audiência contemporânea, que atinge em torno de 60 % do público da Netflix, tornou-se a mola mestra do consumo do streaming, e tem provocado interrogações psicopedagógicas nos acadêmicos preocupados com a saúde pública e nos produtores de algoritmos focados na expansão do consumo. Ao binge-watching, acrescente-se o binge-searching – frenética busca por conteúdos e pesquisa incessante no Google, também frequente nos habitués dessa nova forma de fruição televisiva – e o speed-watching, capacidade pura e simples de acelerar a velocidade da exibição e perder menos tempo. Diante desse público freneticamente exigente, os roteiristas da “Cidade do Mortos” procuraram agradar a todos: povoam a série cenas de canibalismo, quase-zumbis cegos cuspidores de sangue, acidente aéreo, misticismo silvestre, perseguições na neve, reféns no porão, sexo no carro e no chão, traições escabrosas, execuções sumárias, criança perdida na floresta, cirurgias na base do cuspe, agonias delirantes, aldeias abandonadas…
Tudo isso, naturalmente, com belas imagens e paisagens, flashbacks traumáticos, câmeras subjetivas e edição inclemente na busca do frisson. A série foi baseada no primeiro livro publicado da escritora Yana Vagner, lançado em 2011: em 2008, ela começou um blog, com relato em primeira pessoa, de sobrevivente de um vírus pós-apocalíptico – que se tornou um blog viral, coletando centenas de comentários e reações. O livro, Vongozero, foi um sucesso, traduzido em onze línguas. Yana não participou da confecção do roteiro, mas acompanhou e deu sugestões. Vários personagens foram excluídos: ela admite que o resultado parece ter ganho ritmo e volume, voltas e reviravoltas, projetado para o público em massa, disse. Por exemplo, na série a Síndrome de Asperger foi agregada ao filho da atual esposa de Serguei. As principais ideias de Yana, contudo, permaneceram e revelaram-se capitais: os membros da segunda família no enredo – um bem sucedido e inescrupuloso empresário (Alexander Robak, outro bom ator), signo da modernidade na Rússia de Putin, sua parceira Marina, ex-stripper de cabaré, e a filha Polina, alcóolatra e desajustada (Viktoriya Agalakova, atriz de sucesso em filmes de terror) – seguiram firmes na constelação dos personagens “realistas” e completam o páthos da história.
E como se tudo isso não bastasse, ninguém outro que Stephen King postou no seu twitter: TO THE LAKE, uma série russa muito boa na Netflix. Quatro coisas a saber: 1. Existe uma praga: 2. Tem muita neve e frio (Rússia, idiota): 3. Todo mundo bebe vodca: 4. Alerta de spoiler fraco: a criança é um pé no saco. A dica telegráfica do famoso escritor sintetiza uma espécie de senha para a inserção global da Rússia no início do século 21, na era Putin: glamour e pânico.