Cento e Quatro
Odisseia moderna
Por João Lanari Bo
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
por mim prefiro morrer de um trago no mar,
do que definhar lentamente numa ilha deserta
(Homero, Odisseia)
Desde que Homero descreveu as extraordinárias aventuras de Ulisses em seu retorno a Ítaca, o mar tornou-se metáfora privilegiada do percurso heroico, da sobrevivência em um mundo selvagem, oposto ao mundo aparentemente estável que nos rodeia em terra firme. Segundo os gregos, o mar é infestado de seres que têm responsabilidade de nutrir as águas – ou seja, nutrir os deuses do mar. Como isso acontecia? Com a destruição de barcos e homens, naufrágios e mortes. “Cento e Quatro”, o documentário de Jonathan Schörnig exibido no É Tudo Verdade 2024, atualiza essa metáfora para o mundo desigual e complexo do século 21 – uma história, enfim, de sobrevivência.
São cento e quatro migrantes africanos – provenientes sobretudo do Sudão e do Sudão do Sul, e também do Egipto, Nigéria e Chade – todos em luta por uma oportunidade de trabalho no rico e suntuoso continente europeu. África, esse continente saturado pela exploração colonial, que entre outras consequências alavancou a riqueza dos países colonizadores da… Europa, acabou tornando-se fonte de mão-de-obra imprescindível para esses mesmos países. “Cento e Quatro” acompanha em tempo real o resgate de um barco inflável de borracha em vias de afundar, apinhado de migrantes, sem água ou dispositivos de comunicação, utilizando câmeras paralelas – steadycams, GoPros, celulares – e dividindo a tela em seis ou menos quadros. Uma solução que provoca, de saída, uma errância ótica a um só tempo desestabilizadora e estimulante para os espectadores.
Tudo começou em 2019, quando a ONG Mission Lifeline International, baseada em Dresden, na Alemanha, adquiriu a embarcação que seria adaptada para missões de resgate dos migrantes africanos no Mediterrâneo. Batizado de “Eleonora”, o barco localizou em agosto daquele ano um bote inflável com 104 homens a bordo, vagueando a esmo pelo mar e sob sério risco de afundamento. Às 12h59 do dia 28 de agosto de 2019 começou o resgate, feito através de lancha que transportava 6 a 8 pessoas por vez. Clara Richter, mediadora cultural, comunica-se em inglês com o grupo, instruindo-os a embarcar e distribuindo coletes salva-vidas: são várias viagens de ida e volta entre os barcos, até que uma lancha da Guarda Costeira da Líbia se aproxima e provoca a aceleração da transferência, por pura intimidação – a operação estava sendo feita em águas internacionais.
“Cento e quatro” imprime nesse vai e vem uma alta dose de ansiedade e tensão, na audiência e também nos participantes da ação. A edição das imagens – feita on-the-spot pelos olhos dos que assistem ao filme, graças a divisão dos quadros – provoca um efeito de simbiose entre os que executam o salvamento e o contingente de africanos. O risco de alguém cair no mar é permanente: no comando do “Eleonora”, o capitão Claus-Peter Reisch coordena a tripulação de apenas sete pessoas. Cair do mar significa a possibilidade de ser enviado para centros de encarceramento da Líbia, onde milhares de migrantes foram vítimas de abusos. A opção de desembarcar na Europa, mesmo com a provável detenção e a incerteza do futuro, afigura-se obviamente muito melhor.
A odisseia desses 104 migrantes começou bem antes, desnecessário ressaltar, atravessando situações de risco inimagináveis para atravessar a África subsaariana e chegar à Líbia. O italiano Mateo Garrone dramatizou essa epopeia em “Eu, Capitão”, realizado em 2023: oportunidades econômicas limitadas, conflitos entre milícias islâmicas, governos repressivos, populações jovens crescentes e alterações climáticas são os principais fatores que impulsionam milhões de novos migrantes a cada ano. Muitos morrem na travessia, principalmente no deserto saariano, e outros tantos são interceptados no Mediterrâneo e deportados de volta ao continente africano.
Desde 2016, de acordo com a Organização Internacional de Migração (OIM), foram quase 2 milhões de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, a tentar a travessia do Mediterrâneo: quase 600 mil foram impedidas de completar o trajeto, 22 mil morreram ou desapareceram no mar e o restante chegou ao destino. Em 2021, o número de mortes ou desaparecimentos no mar chegou a pouco mais de 2 mil, alcançando mais de 3 mil em 2023: em janeiro e fevereiro de 2024 foram contabilizadas mais de 100 mortes.
O mar que Ulisses navegou tem uma longa história de migrações. A mobilidade humana em todas as direções através do Mediterrâneo ocorre há milhares de anos, com ou sem a ajuda dos deuses da mitologia grega. “Cento e Quatro” investe nesse território mítico e traz à visibilidade o drama dos viajantes contemporâneos.