Casa Izabel
Brincar de ser mulher
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
Os obscuros desejos de homens poderosos sempre são guardados a sete chaves, em alguns casos, em quatro paredes. Se na maçonaria esses homens se reúnem para fazer Deus sabe o quê, na “Casa Izabel”, eles deixam suas personalidades na soleira da porta e se transformam em outras pessoas, em mulheres, montando-se, desde a peruca até a maquiagem. O filme realizado por Gil Baroni, diretor de “Alice Junior” (2019), é livremente inspirado em Casa Susanna, livro de fotografias que mostra os frequentadores da Casa: homens estadunidenses travestidos de mulher entre 1950 e 1960, os quais se reuniam secretamente aos fins de semana nessa casa isolada, em Catskills, Nova York.
Afastado de tudo, em 1970, no interior, há um casarão. Uma placa indica, chama-se “Casa Izabel”, nome que historicamente e politicamente é ligado à libertação, mas com válidas ressalvas. As armas devem ser deixadas na recepção. A partir dali, o externo é esquecido e os homens se transformam em damas. Regina (Andrei Moscheto) é a novata. Guiada por Leila (Jorge Neto), ela entra nesse mundo distinto, singular e cheio de regras, um aparente refúgio e espaço de liberdade para quaisquer fantasias, até ser presidenta do Brasil. Paralelamente, as preocupações de Dália (Laura Haddad), que cuida do lugar, são bem reais: a convalescença de Izabel (Luís Melo) e o sumiço de seu filho Daniel.
O desconforto e estranhamento aparentes de Regina são bastante tangíveis e, em certa medida, representam também a confusão momentânea do espectador, que logo entende que montar-se e travestir-se é o primeiro passo para a transformação. A escolha do nome, por exemplo, também exige atenção, não deve ser feita ao mero acaso de bater o olho em um pó-de-arroz – a não ser que signifique rainha. Ainda assim, elas não conseguem se desvincular de fortes traços de masculinidade. Em alguns momentos, sobretudo pela caracterização, o longa me remeteu à “ Num Ano de 13 Luas”, de Rainer Werner Fassbinder. Enquanto, no filme do diretor alemão, Elvira é de fato uma mulher trans, na obra brasileira tudo é apenas um faz de conta, é brincar de ser mulher, ainda exercem masculinidade, seja resguardando o belicismo e o tesão em armas ou contraditoriamente reforçando discursos machistas e racistas.
A contradição e hipocrisia que decorre entre progressismo e conservadorismo também se aplica ao espaço onde o jogo cênico e as performances acontecem. A casa colonial, que remonta origens escravocratas, é anacrônica para aquele determinado momento histórico. Esse apontamento é feito, inclusive, por algumas ‘hóspedes” da casa, que afirmam que ela está em plena decadência. Na realidade, as próprias reuniões evidenciam essa decadência – a repetição das mesmas histórias e a mesma cadência musical das canções tocadas no piano. Por isso, Izabel, acamada, relembra o passado por meio de suas filmagens. Suas memórias se tornam, portanto, os próprios registros, lembra apenas de um tempo com maior vivacidade, mais mulheres e mais leveza. A digressão temporal, intoxicada pela nostalgia, é tanta que se materializa formalmente em um quase clipe que emula a estética de filmes caseiros em película.
Ainda sobre a questão formal, a fotografia de “Casa Izabel” se adequa bem à arquitetura colonial. As marcações de Gil Baroni prezam pela simetria, muitas vezes utilizando as janelas como molduras. Em outros momentos, para pontuar a dramaticidade, são utilizados zooms, que impulsionados pela potente trilha sonora, exercem esse crescente suspense. Ou seja, por mais que o colonialismo da casa seja ultrapassado, é como se as práticas deste tempo se mantivessem. É simbólico que Leila, por exemplo, seja negra. Essa personagem transicional, que frequenta o salão, vestida como mulher, e a cozinha, na condição de ajudante de sua tia/ mãe de consideração, é subjugada pelas dinâmicas de poder desenvolvidas dentro da casa. Dessa mesma forma, é significativo e disruptivo o papel central que ela exerce na trama. Pautado nessas relações de poder dentro da casa, o real e as verdadeiras personalidades começam a transbordar as fantasias, e as verdadeiras intenções são reveladas, daí se depreende a potência dramática da obra. Na ausência da “matriarca”, algumas se digladiam pelo controle, em uma associação quase militar. Se no microcosmo existem essas regras cênicas do faz-de-conta, mas que mantém muitos traços do exterior, no macrocosmo a opressão é vista na ditadura. Portanto, o longa exerce um trabalho eficiente – e difícil – em conectar esses diferentes interesses, essa variação também se dá na dualidade de tom entre comédia e suspense que tomam conta de toda a rodagem.
“Casa Izabel” é uma obra que traz a temática queer, mesmo em um aspecto de segredo, para os anos mais duros da ditadura. O contraste entre o performático faz-de-conta com as eventuais verdades ocultas consegue sustentar bem a obra, que mantém uma crescente imprevisibilidade nesses encontros, descobertas e conflitos. Toda a construção da Casa depende também do trabalho de elenco. As performances e o próprio roteiro em si evidenciam a idiossincrasia das personagens, cada uma com seus próprios anseios e também medos – ser descoberta, talvez. O elenco, inclusive, foi escolhido antes mesmo do roteiro estar pronto. Luiz Bertazzo, roteirista do longa, explica que este foi o “maior desafio”, apontando a necessidade de “criar perfis que se encaixem nesses atores”. Contudo, conhecer o trabalho prévio da equipe foi determinante para o processo criativo. “A sorte é que eu conhecia todos eles do teatro. Então eu sabia o que cada um poderia entregar”, finaliza Bertazzo.