Cartas para Além dos Muros
Estilhaçando Tabus
Por Jorge Cruz
Retomando as origens dos primeiros casos de transmissão do vírus HIV no Brasil o documentário “Cartas para Além dos Muros” se propõe a rediscutir os preconceitos que foram colocados para fora na época da descoberta da doença. O título do filme é baseado na obra de Caio Fernando Abreu, um paralelo que é ignorado por boa parte do tempo. As cartas que ele escreveu talvez sejam as peças literárias mais pungentes sobre o tema em toda a produção nacional, um fardo bem pesado que a obra cinematográfica chama para si – sem obter o êxito sob esse aspecto. O longa-metragem do experiente produtor André Canto (desta vez na função de diretor) preza por uma montagem tradicionalista, se utilizando da técnica das cabeças falantes ao lado das já tradicionais imagens de arquivo para fazer o seu recorte.
A robustez da contextualização histórica é fundamental para que os mais jovens compreendam a maneira homofóbica com a qual a Aids foi tratada a partir do final dos anos 1970. Utiliza como pontes para a História jornalistas e pessoas próximas de vítimas do vírus, incluindo o músico Cazuza, na tentativa de relatar, orientar e conscientizar. Frentes complexas por si só, que tornam ainda mais árduo o trabalho quando se almeja abarcar um longo período de transformação da sociedade. “Cartas para Além dos Muros”, com muita propriedade (diga-se de passagem) concede justiça ao médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira, pioneiro nas pesquisas sobre o HIV, ao mesmo tempo em que gasta boa parte de sua projeção trazendo algumas das articulações da sociedade civil fundamentais para que o apoio às pessoas infectadas fosse dado. Criando sempre uma outra ponta, a montagem precisa voltar duas casas, por vezes resgatar depoimentos dissonantes dos introduzidos para aquele bloco do filme, para se fazer entender. Prezando sempre pelo conteudismo, se apresenta como uma peça jornalística das mais exigentes para com o público, exigindo um interesse prévio em saber mais sobre o assunto.
Mesmo assim, pouca coisa no filme é de notório saber. Talvez a maior delas seja o trato que a revista Veja deu quando entrevistou o mesmo Cazuza, elevando o sensacionalismo à infinita potência, creditando no entendimento quase uníssono da sociedade da época de que o responsável pela doença eram as próprias vítimas. Uma vez que a cura não era possível e a vida estava bem comprometida a partir da manifestação do vírus, o pragmatismo das políticas públicas neoliberais de então optava por virar de costas para os necessitados.
Essa ausência das instituições quando da epidemia do HIV talvez seja o que de mais chame atenção em “Cartas para Além dos Muros“. Outra questão é trazer a importante figura midiática do Dr. Drauzio Varella em uma atitude mas expositiva de sua imagem com o objetivo de alertar pessoas menos politizados sobre a importância do respeito ao indivíduo em um debate tão urgente quanto esse. Essa descida de pedestal que aproximou o profissional da sociedade civil novamente faz lembrar Fernando Henrique Cardoso em “Quebrando o Tabu“, como figura de credibilidade para aqueles que pouco sabem do assunto. Porém, essa tática é quase inócua, pois já vimos que o conteudismo da obra repele os não-iniciados. Merece destaque também a sensível participação do mestre Jean-Claude Bernadet.
A sociedade não deve ser ingênua e acreditar que o processo de desumanização observado junto aos portadores do vírus HIV não ganhará força novamente por conta dessa onda conservadora em que vivemos. Todavia, “Cartas para Além dos Muros” não atinge um equilíbrio entre a sequência de testemunhos importante para uma ampliação do leque de grupos afetados pela doença com as diversas abordagens médicas e científicas que vão de meios de contágio até a sempre falada vida após o diagnóstico. A subversão daquela estereotipização condenada em seu primeiro ato é a ponta solta que mais devemos lamentar, que a produção nacional de documentários tem desenvolvido com propriedade – para mencionar a obra mais recente, “O Corpo é Nosso“.
Abordagens mais críticas como a expansão da Aids ser uma das táticas do genocídio negro e a aumento da LGBT fobia acabam sendo meramente pincelados surgindo de maneira desfocada no ato final. Em dados momentos parece até que essa atualização do debate ocorrerá, mas eis que surgem novamente os médicos com com suas abordagens mais informativas.
Seu ar mais denunciador se encerra abruptamente, não aprofundando a questão da luta por remédios, até hoje judicializadas. Após esses trechos tão fundamentais, há uma flutuação entre o discurso político, com representantes de várias vertentes dessa classe se vangloriando dos avanços de cada governo, em paralelo aos depoimentos de vítimas e médicos. Algo como um jogral conscientizador sobre aspectos técnicos da doença misturado com maneiras de construir políticas públicas – sem, ao menos, cutucar a ferida de que muitas delas estão sendo descontinuadas.
Ou seja, “Cartas para Além dos Muros” traz um panorama tão amplo em seu objeto, abarcando tantas modalidades díspares de representações, que perde na sensibilidade e no sentido de urgência.