Blonde
Um conto de fadas às avessas
Por Pedro Sales
Festival de Veneza 2022
“Aviso: Este filme é uma reprodução ficcional da vida de Marilyn Monroe. O conteúdo não corresponde à verdade dos fatos“. Se “Blonde” tivesse em sua abertura um letreiro evidenciando o caráter especulativo, ficcional e imaginário da obra, talvez, a má recepção seria menor. Ao mesmo tempo, esse fator poderia dissuadir o espectador interessado no real de enfrentar as quase três horas de duração. O longa de Andrew Dominik não é totalmente biográfico, em primeiro lugar, e tampouco se compromete com a História – aqui com “h” maiúsculo. A polêmica precede o filme da Netflix estrelado por Ana de Armas. O livro de Joyce Carol Oates, base para o longa, desde seu lançamento, esteve envolvido em debates acerca de misoginia, abusos e revisionismo. Dominik abraçou a infame tarefa de adaptação e, assim, herdou da autora as controvérsias.
O tom adotado pelo diretor é sádico e beira o cruel. A discussão levantada a respeito da representação de Charlie, no meu texto de “A Baleia“, também é válida para este filme, sobretudo pelo ostensivo olhar masculino adotado pelo cineasta. A Marilyn Monroe de Dominik é frágil, destruída e mutilada, tanto pela fama quanto pelas memórias. O determinismo de “Blonde” impõe o sofrimento desde a infância da personagem. Quando criança, Norma Jeane (Lily Fisher) vive às margens de Los Angeles apenas com sua mãe alcóolatra Gladys (Julianne Nicholson). O pai, ela sequer conhece. Não é exagero pontuar que a própria introdução já é um tour de force, com cenas de abuso infantil altamente estilizadas e uma carga dramática cheia de gatilhos e, claro, sofrimento.
Aos poucos, a estrutura da história se assemelha a um conto de fadas às avessas. A Gata Borralheira Norma Jeane finalmente se torna Cinderela. O preço do sucesso e da fama, no entanto, é alto demais. Ser Marilyn é o equivalente a ser um pedaço de carne, a câmera de Dominik comprova isso. A obra adquire, portanto, um encadeamento pautado na onda de sofrimentos e degradações de uma mulher atormentada por sua posição e por suas memórias. É um pesadelo cruel acompanhar a dicotomia Norma Jeane-Marilyn nestes episódios. A ausência de um fio condutor claro na narrativa, por vezes traz um tom episódico ao longa. Não há preocupações com datas ou com as mudanças de vida de Marilyn. As passagens de tempo são apenas percebidas pelos penteados diferentes e pelas transições ousadas de Dominik. Os mais atentos à trajetória da estrela conseguirão se localizar historicamente à medida em que Monroe atua nos filmes.
A temporalidade turva, apesar de incomodar, permite uma construção dramática quase em fluxo. Ou seja, para mim, está longe de ser o principal problema do longa. Por outro lado, o mau aproveitamento dos personagens secundários é uma falha estrutural em “Blonde“. Pode se dizer que eles são mais “orbitais” do que secundários, uma vez que ficam em torno de Marilyn e depois desaparecem sem mais nem menos, sem sequer o direito de um desfecho. Até personagens importantes para a trama como Joe DiMaggio (Bobby Cannavale) e Arthur Miller (Adrien Brody) nunca extrapolam a função narrativa de par e resguardam, de certa maneira, o sofrimento da personagem. Os únicos que fogem à regra são Cass (Xavier Samuel) e Edward (Williams). Além da dupla ser interesse sexual da atriz, os dois representam para ela um encontro de almas. Todos se identificam como “não desejados pelos pais”. Entretanto, seria um pleonasmo dizer que eventualmente eles infligem dor à personagem.
Portanto, a performance que merece ser enaltecida é a de Ana de Armas como Marilyn/Norma. A personagem lida com toda a sorte de abusos em um ciclo interminável de violências. A atriz é bastante competente em transmitir a vulnerabilidade onipresente de Marilyn, seja pelos homens que a rodeiam, seja por uma instabilidade mental. De Armas transita do histriônico psicótico à tristeza depressiva que causa compaixão. Há uma clara alternância entre personas Norma Jeane e Marilyn, ilustrada visualmente pela cena do espelho. A dualidade entre vida pessoal e profissional é melhor explorada na primeira metade do longa. No restante do filme, porém, Dominik perde a oportunidade de investigar o que separa a Norma Jeane que lê Tchekhov do sex symbol cinematográfico Marilyn Monroe.
O diretor está mais preocupado em sexualizar sua protagonista. Parece que ele divide o mesmo olhar predatório que o público e os produtores dos anos 50 tinham em relação à artista. Colocar Marilyn nua diversas vezes ao longo de “Blonde” é materializar a fragilidade da nudez em fragilidade física. Coação, violência e chantagem quase sempre estão em volta desses momentos. Existe, em todos 166 minutos, apenas uma cena que Dominik filma a nudez de forma diferente, e não puramente degradante. Quando ela está em um ménage, a mise-en-scène faz um uso interessante de espelhos e deformações da imagem, tornando o ato mais simbólico e menos explícito. É pouco ainda. No geral, há uma obsessão do cineasta em objetificá-la com ecos paternalistas. A ausência da figura paterna para Norma faz com que ela sempre se refira ao seus esposos, namorados e interesses românticos como daddy (papai, em inglês). Isso ainda associa a infantilização ao sexo, uma das várias degradações que a personagem sofre.
É bem fácil pontuar o que me desagrada no longa. Por outro lado, os destaques são poucos. Além da excelente atuação de De Armas, é impossível não destacar a questão técnica da obra. A estilização da fotografia e eventuais alternâncias entre preto-e-branco e colorido chamam facilmente atenção. Ainda assim, essas mudanças de cor parecem não obedecer a uma regra específica, como também acontece com as mudanças na proporção de tela. Seguindo lógica ou não, sendo arte pela arte ou não, fato é que existe um cuidado muito tangível nos enquadramentos e na produção em geral. Dominik também se sente confortável para experimentar. O cineasta imita zooms do período clássico hollywoodiano, usa flashes brancos (câmeras, salas de cirurgia) para criar um senso de desorientação na personagem e, por fim, transforma o caos da vida de Marilyn com uma encenação semelhante ao terror.
“Blonde” é controverso, é quase um desafio terminar de vê-lo. A tônica do filme se estrutura sobretudo no sofrimento torturante infligido em Marilyn. Existe assassinato, uso de drogas, estupro, aborto e agressão infantil e contra a mulher. Para lidar com essa gama de atrocidades, o filme se engrandeceria muito mais com um olhar sensível e não com a câmera humilhante de Andrew Dominik que testemunha com certo sadismo todos esses desastres. Atrelado a isso, a falta de sensibilidade fica perceptível até nas canções. O diretor acha uma boa ideia inserir canções como “Every girl needs a Daddy” (toda garota precisa de um papai) e “Bye,Bye Baby” (tchau, tchau, bebê) em momentos de abandono parental e aborto. Portanto, a obra mutila Marilyn Monroe, faz dela um objeto. Toda sua trajetória artística é sublimada em detrimento da representação da violência. No martírio de Norma Jeane não há nada de sublime, ao sofrer as maiores desgraças é evidente, como o cineasta não consegue lidar humanamente com o peso dos assuntos abordados.