Bernadette
Meu marido me diz todas as manhãs que tenho muita sorte de ter casado com ele
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 2023
Jacques Chirac, Prefeito de Paris durante anos e Presidente da França durante outros tantos, foi um caso-limite de autoestima patológica: todas as manhãs, acordava e soltava essa certeza egóica para a esposa, nascida Bernadette Thérèse Marie Chodron de Courcel, e, depois de casada, Bernadette Chirac. Pois chegou a hora de dar voz a essa alteridade do ego inflado de Chirac: “Bernadette”, filme de 2023 dirigido pela estreante em longas-metragens Léa Domenach, não apenas dá voz e forma à mulher que conviveu mais de seis décadas com um político populista que liderou a direita dita moderada francesa: dá voz a mulher que conviveu com um colecionador de amantes a granel enquanto dialogava com os poderosos do planeta e – helás! – terminou como caricatura em um filme onde contracena com, nada menos nada mais, Catherine Deneuve.
Elencar Deneuve como Bernadette foi a tacada de mestre de Domenach – a atriz, talvez a mais brilhante remanescente do cinema de estrelas dos anos de 1960, simplesmente rouba a cena. Ela, pelo carisma e existência imagética, é maior do que Bernadette, Chirac e a turma de assessores arrogantes e bajuladores que cercava o Presidente. Catherine Deneuve, pela presença física nas imagens em movimento, pela certeza ontológica que transmite, diriam os filósofos, confere a “Bernadette” uma densidade histórica que vai além dos detalhes e referências aludidos – mesmo que, ou sobretudo em função de, como advertem os letreiros iniciais: este filme é uma adaptação livre da vida de Bernadette Chirac; o que se segue não é sempre verdade, é uma obra de ficção.
Quem reconstitui a História é, enfim, Catherine Deneuve. Claro, a Bernadette da vida real tem a sua cota, afinal foi ela que atravessou humilhações e revanches, ela que teve tirocínio estratégico quando pôde opinar nas encruzilhadas do parceiro. Bernadette e Jacques se conheceram no curso de ciência política, a famosa Sciences Po, em Paris, na década de 50. Se apaixonaram e ela, dedicada ao futuro marido, escrevia fichas de leitura, tomava notas quando ele faltava aulas e, para arrematar, as deixava na casa de Jacques. Casaram-se em 1953, contra a vontade da (ultra burguesa) família Chodron de Courcel, que via no rapaz um homem sem fortuna, sem fé religiosa e orgulho excessivo. Anos mais tarde, em 2015, Bernadette admitiria que foi não foi um casamento de amor, mas um casamento de ambição.
“Bernadette”, o filme, mergulha nessas contradições com a nonchalance que a perícia dramática de Deneuve é capaz: quando ela, em um momento de torpor após um AVC de Jacques, confessa à filha Claude – Eu amo seu pai, apesar de tudo – esta é uma afirmação verídica, na medida em que acreditamos piamente em quem fala, Bernadette/Deneuve. A situação, na saída da Igreja onde se encontraram para rezar – Bernadette, ça va sans dire, é católica praticante – é sopesada pela chegada e súbita saída da outra filha, Laurence, reclusa e anoréxica. Esta foi a sombra que perpassou a vida do casal Chirac: Laurence contraiu meningite aos 15 anos, em férias na Córsega, e teve como consequência anorexia e depressão que a atormentaram a vida toda, com várias tentativas de suicídio. Jacques, sempre viajando – a filha Claude dizia não me lembro de ter passado um domingo com ele – enche-se de culpa com o agravamento da doença e obriga-se, mesmo como Prefeito e Presidente, a vir almoçar todos os dias com Laurence, mesmo que isso significasse fazer uma segunda refeição.
Bernadette, a primeira dama, reagiu com um ativismo filantrópico notável: são inúmeras suas iniciativas ligadas a saúde pública, artes, até cruzadas internacionais de apoio a crianças desaparecidas e exploradas sexualmente. Catherine Deneuve reproduz o oportunismo e a sagacidade de Bernadette nessas situações, desprestigiada pelo marido, com o mesmo humor que replica as revelações de infidelidade de Jacques. Uma delas foi no dia em que a Princesa Diana morreu em acidente de carro em Paris, no dia 31 de agosto de 1997: o marido não foi achado para falar à nação, estava em algum local fora da cidade com uma “atriz italiana” – seria Claudia Cardinale. Dias depois, em ocasião pública, Bernadette/Deneuve sorri e retruca aos repórteres que a assediavam – eu não sou a Cardinale!
Não era Cardinale, mas tornou-se a Deneuve. Entre outros tirocínios, foi ela quem previu a ascensão do Front National, hoje renomeado de Rassemblement National, na eleição presidencial de 2002. O adversário de Chirac era Lionel Jospin, do Partido Socialista – ninguém dava a mínima para o candidato da extrema direita, Jean-Marie Le Pen. Ele, não obstante, ganhou de Jospin e foi para o segundo turno, afinal vencido, de longe, por Chirac. Jean-Marie é pai de Marine, que lidera a oposição hoje na França. Nas últimas eleições legislativas, em dois turnos, 30 de junho e 7 de julho de 2024, o Rassemblement foi o partido com mais votos, mais de 10 milhões, insuficientes para abocanhar o cargo de Primeiro-Ministro. A escalada eleitoral do grupo de Le Pen, depois de 2002, é evidente.
Bernadette, mais uma vez, tinha razão – helás.