Belchior – Apenas um Coração Selvagem
Como nossos pais
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
“Belchior – Apenas um Coração Selvagem”, dirigido por Natália Dias e Camilo Cavalcanti, apresenta a fusão de duas tendências recorrentes no cinema contemporâneo: as homenagens póstumas e as biografias musicais. Das homenagens póstumas, podemos verificar a ocorrência mesmo na atual edição do festival É Tudo Verdade: “Adeus, Capitão” (Vincent Carelli) e ”Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto” (Pedro Rossi) são bons exemplos. Quanto às biografias musicais, verifica-se o sucesso dessas sobretudo a nível mundial: lembrar dos recentes indicados ao Oscar “Bohemian Rhapsody” (Bryan Singer, 2018) e “Rocketman” (Dexter Fletcher, 2019).
Independente do mérito de cada uma delas, o sucesso dessas obras se explica, em algum grau, pela nostalgia. Assisti-las é rememorar tempos passados e, em alguns casos, pessoas já falecidas. Por conta desse desafio autoimposto de representar aqueles que não mais vivem, muitos desses filmes lançam mão de material de arquivo para restituir a presença delas.
Como biografia, “Belchior – Apenas um Coração Selvagem” faz o seu trabalho com competência. Os diretores reúnem uma tal quantidade de clipes de modo a traçar um detalhado retrato de toda a vida do artista, desde a infância até a morte. Neste percurso, um ponto crítico é a mudança de Belchior do Ceará para a região sudeste (primeiro o Rio de Janeiro, depois São Paulo). Logo no início, vemos um trecho de um programa de auditório no qual ele brinca que “São Paulo é a maior cidade do nordeste”; aqui, fica clara a intenção de enquadrar esse acontecimento não como uma particularidade da vida do protagonista, mas como uma tendência geral da população brasileira na época. Mais tarde, imagens de vendedores ambulantes nas ruas de São Paulo são utilizadas para ilustrar o complexo fenômeno do êxodo rural.
Este, porém, ainda é um filme sobre Belchior e apenas sobre ele, portanto voltamos ao artista: o que se objetiva com essa caracterização geográfica é demonstrar a miríade de referências atuando no interior do músico: ele mesmo se diz igualmente influenciado pela música de sua região e pelo “pop da tropicália”; diz que “quem tem raiz é árvore”, brincando com a expectativa colocada em cima dele para que o seu estilo permaneça sempre o mesmo.
Vemos, aliás, este tema florescer ao longo do filme: a difícil relação entre o artista e a mídia. Belchior reivindica a todo instante o direito a experimentar, a não se definir, a não oferecer respostas prontas aos ouvintes por meio de suas letras (pois ele próprio não as tinha); enquanto a imprensa e a crítica lhe cobravam o contrário. A missão de “Belchior – Apenas um Coração Selvagem”, então, é problematizar esses julgamentos, dando ao artista um retrato justo e ao espectador uma noção da sua grandeza.
É aqui que encontramos, talvez, um aspecto pouco interessante de alguns desses filmes-homenagem de que falamos: a constante alusão à grandeza do artista. “Belchior – Apenas um Coração Selvagem” dá ao espectador a possibilidade de sentir essa grandeza, é claro, mas ele não o faz senão intermitentemente; intercalamos trechos de performances do cantor com outros trechos não-musicais, de caráter expositivo, em que a tal grandeza nos é imposta verbalmente.
Os melhores filmes musicais — ou filmes que tomam a música como assunto, ainda que não o principal — são aqueles em que a grandeza do artista é sentida em toda a sua potência, de modo que a descrição verbal ou demais subterfúgios sequer se fazem necessários: lembremos da maravilhosa participação de Maria Bethânia em “O Desafio” (1965), de Paulo Cezar Saraceni, ou do retrato hipnotizante que Rogério Sganzerla faz de Jimi Hendrix em “O Abismu” (1977).
Quanto a “Belchior – Apenas um Coração Selvagem”, não podemos deixar de lamentar o fato de que ele é menos uma obra autônoma que um referente a uma outra obra — esta sim grande, de qualidade superior — que lhe é externa, isto é, a própria obra de Belchior. Um aperitivo que convida o espectador a experimentar o prato principal.
Nesse sentido, vale considerar a recorrência da música “Como Nossos Pais” — cuja letra repudia a adequação de uma geração aos costumes da anterior — ao longo do filme. Não deixa de ser irônico que essa mensagem esteja embalada num filme em que vemos praticada a idolatria que o próprio Belchior diz ser improdutiva. “Belchior – Apenas um Coração Selvagem” atenderá perfeitamente aos desejos do espectador que deseja um comovente resumo da vida e obra do artista. Como obra autônoma, porém, ainda é um filme preso aos “velhos costumes” de representação documental — um filme bem comportado. Será isso o suficiente?
1 Comentário para "Belchior – Apenas um Coração Selvagem"
Belo texto ,Pedro Mesquita.
O que me ocorre de assalto é a grande responsabilidade de falar de um gigante ,artista,cantor,compositor como ele. Eu, teria medo,e muita tentação;o fã que ama tanto até que mata. Lamento não te lo conhecido antes, cada letra impressionante, a força do sentido e da voz . Agora fico com “a alucinação de suportar o dia dia” e o delírio da experiência de ouvir canções tão lindas.