Batata
O leão e as raposas
Por Ciro Araujo
Durante o É Tudo Verdade 2022
No É Tudo Verdade 2022 eis um filme com um nome curioso: “Batata”, da cineasta Noura Kevorkian. Um longa de duas horas sobre… batatas. Simples solanáceas, plantas históricas e que acabam representando em um geral conflitos humanos. Varda já teria feito cinema sobre as benditas lá para os anos 90. Chega a ser cômico então que exista espaço para uma comida ser tão protagonista quanto é apresentada já inicialmente na obra selecionada pelo festival. Porém acaba que falar sobre batatas é político e que enfrenta um contexto mais tenebroso do que o esperado.
Não é à toa que a obra de estreia da diretora sírio-libanesa seja a que se permite filmar durante longos dez anos. Na realidade, é mais do que ideal, é situacional. O Líbano foi ocupado pela Síria durante quase 29 anos, fruto de escaladas durante a guerra civil no país. Do outro lado, o país sírio enfrentou (e, na verdade, enfrenta) diversos conflitos, sejam ele do líder Bashar al-Assad, o “Leão”, ou da guerra civil no país que resultou no fortalecimento por consequência do Estado Islâmico.
A partir dessa visão, Noura decide enfrentar esse escalonamento do ponto de vista de refugiados que simplesmente plantam batatas. Uma tarefa tão pacata, mas que representa a ansiedade envolvendo estar em território estrangeiro, que não é seu, e ser uma das poucas opções viáveis para se viver de um ponto de vista minimamente digno. Talvez como conquista maior da diretora seja ter realizado o filme em suas duas horas. Jean-Louis Comolli escreve:
“Filmar os homens reais no mundo real significa estar às voltas com a desordem das vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário.” (Jean-Louis Comolli, Ver e Poder – A Inocência Perdida: Cinema, Televisão, Ficção, Documentário)
“Batata” se vê no meio da filmagem dentro da Primavera Árabe. Logo em sequência, uma guerra. Espremidos e refugiados, aqueles que esperam ansiosamente para voltarem à sua terra. Acabam exercendo o trabalho de raposas, sempre desconfiadas. A cineasta percebe então a relação de poder e confiança com um homem libanês, Mousa. Kevorkian, que normalmente filma na mão sua câmera, o olhar próprio metamorfoseando na máquina de observar, se sente também fora do círculo. Existe um distanciamento da população em geral, à exceção de momentos em que o dono da plantação de batatas, do Líbano, está em cena.
Nesse meio tempo, o fazendeiro morre. O local, apelidado de “Camp Mousa” perde parte de sua felicidade e força. As pessoas não sabem para onde ir, o que fazer. Uma decadência, perda de um líder estrangeiro e diferente. Agora, o filme se destrincha em vários pequenos curtas, que contam a sequência do que cada um deseja fazer, no máximo do possível.
O longa-metragem sírio continua insistente em sua pegada, sempre desejando a proximidade da diretora que filma e do entrevistado, ou melhor, observado. Agora, sonhos coletivos não são mais reais, porém há opções de sobrevivência. Em determinado momento é comparado aos sessenta anos dos refugiados palestinos. A circunstância na Cisjordânia e Faixa de Gaza é talvez maior temor sempre que há aproximação situacional na região: existe claro medo de repetição no Oriente Médio. E passam-se dez anos. Em gravação inicial, Noura demonstra o estado catatônico enquanto os residentes daquela ocupação de batatas assistem à televisão diariamente. Não é incomum existirem cenas e mais cenas em que a ação é realizada de forma rotineira; ela agora virou parte, uma extensão da esperança dentro da aflição de cada indivíduo.
Apesar de tudo, “Batata” segue um ritmo de voltas, círculos. De fato, os acontecimentos ocorridos possuem característica que força o filme a ser. Porém, insistentemente ele continua a seguir esse lado de guisa desbalanceada. É possível enxergar amadorismo no cinema de Noura Kevorkian, onde recortes para reflexões entram em momentos inoportunos. O espetáculo em si é perdido em diversos momentos, sua longa duração faz o espectador esquecer em que momento está dentro da obra e se há a necessidade em si de continuar a assistir. E claro, são dez anos de acontecimentos impossíveis de serem recontados através de pouco material, o que faz o desafio realmente de difícil realização. Ainda assim, palmas para o que pode ser considerado uma conquista.