Baile das Loucas
Liberdade dela, propriedade dele
Por Letícia Negreiros
Festival Internacional de Cinema de Paraty 2024
Paris, final do século XIX. A cidade das luzes tinha todo o tipo de diversão a oferecer: teatros, óperas, cafés, bares, bordéis… E, mesmo em meio ao deslumbre da capital francesa, havia quem escolhesse, por uma noite, dançar em um hospital. O “Baile das Loucas”, de Arnaud des Pallières, resgata o ambiente e o contexto da verídica prática sediada no hospital psiquiátrico La Pitié Salpêtrière. O espetáculo costumava ocorrer em meados da quaresma. Os parisienses se vestiam como se fossem à ópera. As internas eram estimuladas a se fantasiar. Algumas eram escolhidas para ensaiar números e entreter os frequentadores. Eram incentivadas a montar caricaturas, criar personagens animalescos de si mesmas.
La Pitié Salpêtrière é uma instituição famosa, amplamente conhecida pelo tratamento desumano dado às mulheres ali internadas. Criado inicialmente para livrar as ruas parisienses de mendigos e vagabundos, logo passou também a abrigar mulheres pobres. O lugar era um hospital psiquiátrico nos moldes da época. Recebendo internas de todo o tipo – de nobres até prostitutas – era um receptáculo de mulheres malquistas pela sociedade de algum modo. Muitas sofriam, de fato, de alguma doença psiquiátrica. Outras, porém, eram indesejadas de outras formas. Tristes demais, irritadas demais, independentes demais.
Consciente desse contexto, Fanni (Mélanie Thierry) se interna em La Pitié Salpêtrière com o objetivo de encontrar sua mãe, outra vítima da internação compulsória. A acompanhamos entrar na instituição. Uma vez dentro do hospital, “Baile das Loucas” nos recebe com uma câmera energética e inquieta. É indecisa, se esforçando para absorver e observar o máximo possível da cena a sua volta. Utilizando-se de zooms ins e outs, pans e uma leve instabilidade de quem grava na pressa de capturar, as escolhas de movimentação de câmera passam a impressão de que foram gravadas em tempo real. Intensificando a diegese, é como se o operador estivesse ali de forma clandestina, sem saber quando perderia a oportunidade de documentar. Essa escolha de Pallières intensifica o sentimento de aprisionamento com o desenrolar da narrativa.
No cotidiano do hospital, Fanni aprende a enxergar e respeitar as demais. É designada para cuidar dos aposentos de Hersilie Rouÿ (Carole Bouquet), interna compulsória de origem nobre. Usufruindo das regalias que seu status social proporciona, tenta se corresponder com a sociedade parisiense para denunciar os abusos de Salpêtrière. É descoberta e punida, perdendo seu direito a papel de carta. Flavienne (Agnès Berthon) a convence a contrabandear em troca de auxílio na busca da mãe. Fanni também é punida, mas há uma espécie de estreitamento de laços.
As trocas com as demais internas intensificam gradualmente o sentimento de identificação. Ela passa a se perceber como semelhante àquelas mulheres. São tão loucas quanto ela. “Baile das Loucas” desenvolve essa sensação de irmandade no uso do vermelho. Em contraste com o azul predominante em Salpêtrière, o vermelho se apresenta gritante e imponente, nas cenas em que essas mulheres se tornam mais unidas. As cores se intensificam ao longo do filme, ficam mais vibrantes. Quase como se a necessidade de estar ali para perceber essas mulheres fosse um delírio de Fanni.
Pallières se utiliza do ambiente do hospital psiquiátrico para manipular nossa percepção da história. Ambroisine (Paméla Ramos) dá à luz e sua filha desaparece. Na busca por sua mãe, Fanni passa a se projetar na menina desaparecida. Nos faz duvidar se ela chegou até o hospital voluntariamente e, mais que isso, faz Fanni perguntar se sua busca não a enlouqueceu.
La Pitié Salpêtrière era um instrumento social para negar à mulher a autonomia sobre seu corpo e, sobretudo, sua mente. Ao roubar do espectador e da própria personagem a percepção de sanidade – por mais que a devolva depois, “Baile das Loucas” reproduz a aflição provocada pelo hospital, salvo as devidas proporções e impactos. Ainda se envolve na mesma arrogância que a festa um dia proporcionou. Se gaba de seu poder. Instiga e depois limita. Condiciona a capacidade de percepção a sua vontade.
Sem grandes planos ou cenas memoráveis, “Baile das Loucas” é, de fato, uma perpetuação do baile das loucas. No entanto, diferente do evento em La Pitié Salpêtrière, tem ciência do mal que retrata. A valoração de certo e errado é muito clara, não há espaço para dualismos na obra de Pallières. Uma obra esteticamente agradável e narrativamente interessante, mas sem o impacto para se deixar marcado tanto quanto a relevância de seu tema.