Aznavour Por Charles
Um certo olhar de Charles
Por Fabricio Duque
Toda e qualquer imagem já nasce memória. O tempo só para no instante exato de sua captação e/ou filmagem. A partir dali, é lembrança e passado. No longa-metragem “Aznavour por Charles”, o acesso a esses arquivos constrói um saudosista epitáfio. Uma ode não só a vida do artista francês, Charles Aznavour, de descendência armênia, mas essencialmente por seu olhar, que consegue traduzir sua existência pelas escolhas das imagens documentadas. Deixa-se claro na obra aqui que esta é um filme de Charles Aznavour. O cantor mostrou em 2017 a o realizador Marc di Domenico um “cômodo secreto” de sua casa, lugar que “guardava seus tesouros”, entre filmes em Super8 e 16mm, além de notas, escritos e entrevistas acontecidas durante a época. Marc então orquestra e costura o que recebeu, transformando o material em uma sensorial experiência narrativa de arquivo histórico-afetivo. Charles faleceria um ano depois, em 2018, aos 94 anos. Assim, este é m filme-testamento de percepções, totalmente livres e subjetivas, sobre culturas comportamentais, amores, perdas, saudades, impulsos e registros de um legado, muito além de suas músicas. “É a câmera que capta melhor o presente. Ao firmar, gravamos algo em nossa mente, com a projeção que virá depois”, explica Charles.
“Aznavour por Charles”, que segue a mesma estrutura biográfica de “Varda por Agnès”, de Didier Rouget (e dos arquivos de “A Mulher da Luz Própria”, de Sinai Sganzerla), é também um filme-adjetivo por definições poéticas-coloquiais, que reverberam a característica máxima dos franceses: a de pensar e formular argumentos-ideias. A narração “recitada” pelo ator Romain Duris (encarnando a emoção de Charles), complementada pelos “convidados” Marie Montoya e Michel Klochendler (colaboram com outras descrições da “combinação de confiança e timidez” sobre o ser homenageado-biografado-autor), nos faz viajar, literalmente. Como foi dito, é um documento histórico, capitaneado por fragmentos captados do passado. “Quando eu filmo, sinto o fim da estrada virar presente e passar para trás. O mundo é um espaço contínuo. Eu me filmo, então eu existo”, diz Charles pela voz de Roman, ressignificando a discussão da selfie, entre “corpos na horizontal”, “memória e loucura”, “ser a capital deles” e a “curiosidade como a manhã do mundo” (a.k.a Federico Fellini).
“Eu filmei em todo lugar, o tempo todo em Super 8 e em 16mm. Todos os rolos estão aqui. Ainda não mostrei a ninguém. Talvez você (Marc) saiba o que fazer com eles. Essas imagens diferem das minhas músicas. Você vai ver minha vida toda passar como um relato que nunca contei antes.”, diz o “boêmio” Charles. “Aznavour por Charles” é uma portal que abre uma realidade paralela. Uma viagem temporal. Uma sensação de verdade existencial. Uma sequência de esquetes orgânicas, à moda vital de Jonas Mekas. O Super8 e o 16mm trazem uma inerente nostalgia de metafísica atemporal. Não se consegue entender o porquê desse arrebatamento quase hipnótico. Quando nós espectadores acessamos a exposição dessas imagens compartilhadas, então podemos formular concepções sobre Charles. De que é impossível dissociar o universo de suas músicas chanson-jazz. E tudo que vê se amalgama nas canções. O francês, que visita a Armênia para ter contato com suas raízes, não é só Charles ou Aznavour.
Não. É uma combinação de referências de realidade observada, transformadas em ficção musical. A perda do amor, a perda do filho e os impulsos de viver intensamente o que a vida tem a oferecer. Com todas suas oportunidades e com o dom recebido. Não também. Charles Aznavour não é só o protagonismo de “Atirem no Pianista”, de François Truffaut, muito menos o “She” de “Um Lugar Chamado Notting Hill”, ainda que o filme de Roger Michell “recrie” a cena do casamento em uma coletiva de imprensa. “Aznavour por Charles” tampouco dá um fim ao biografado, encerrando-se com a liberdade de mostrar que se as músicas e as imagens existem, então Charles Aznavour existe. Dessa forma, o documentário consegue importar a tipicidade francesa de ser contra a “burguesia conservadora” e se apresentando no Carnegie Hall, em Nova York. Atuou em mais de 60 filmes, compôs cerca de 850 canções (incluindo 150 em inglês, 100 em italiano, 70 em espanhol e 50 em alemão). Vendeu quase 200 milhões de discos em todo o mundo.