Até Que a Música Pare
Uma parábola do reacordar
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival do Rio 2023
Talvez a geografia de sua terra natal ajude a cineasta Cristiane Oliveira na construção de seus filmes. O cenário do sul do Brasil aumenta a atmosfera de uma imersão a uma mais aprofundada experiência de existência humanas vividas e compartilhadas no meio social. O frio, o pensamento político mais divergente e lugares mais inóspitos podem alterar sensações físicas de melancolia e uma contraditória e conflituosa suspensão mais pragmática da realidade. Esse pragmatismo pode ser a característica principal de suas obras. Ao lidar os temas familiares com uma maior naturalidade cotidiana de comportamentos típicos, Cristiane consegue personificar o silêncio presente e agudo da alma dos indivíduos que moram nesse lugar, que existem entre a resignação comunitária e a individualidade do querer. Não é nem um pouco simples traduzir esse povo. Ainda mais em seu mais recente filme, “Até Que a Música Pare”, exibido no Festival do Rio 2023.
“Até Que a Música Pare” busca agora a história do passado (não tão distante) para entender o presente. Traz a origem de uma língua (que por sua vez já adaptada pela cultura dos imigrantes italianos – tanto que aqui há legendas) para traçar paralelos de dominação estrutural. Almeja a antropologia do sonho para mostrar transformações desse mundo. A narrativa do filme corrobora outra característica maestria de Cristiane: a sutileza e elegância visual em apresentar tudo o que vemos. Há uma normalização do ambiente que só quem é de lá consegue criar, talvez por ter se acostumado com a espera, com o pensar estendido, com o tempo mais devagar. Isso tudo é captado e sentido pelo público. Inclusive suas barreiras e seus atravessamentos mais detalhistas e didáticos. Sim, quando se tem tempo, a pressa não existe, e assim temos uma diegese alternativa do próprio olhar, que adentra em outra dimensão do se perceber. Pulula-se também aqui o conceito das relações diretas, até mesmo dotadas em sua essência e de aceitação cúmplice entre as partes envolvidas, da intolerância agressiva, da paciência limitada e do sarcasmo perspicaz. O filme é todo desenvolvido pelo mise-en-scéne, pela formalidade da câmera estática, por um teatro mais realista e gestual das ações versus reações (uma panela de pressão cozinhando algo e ao fundo conversas vazadas; mulheres de geração diferente sentadas na mesa do almoço).
Cada uma das personagens acontece na intimidade do tempo real do agora e suas expressões populares locais (e com o sotaque naturalista do sul), entre lembranças e fartura tradicional. Mas “Até Que a Música Pare” não quer colocar fase. Ao longo dessa ambiência crônica, a trama é contada e elementos são inseridos. Propina, perseguição política, acordos, impostos, levar a Santa, o budismo, a “continuidade da alma”, tudo quer navegar entre estágios pessoais de percepção: consciência, intelecto, razão, lucidez, conformismo não alienado, projeção, devaneio e memória. Sim, “Até Que a Música Pare” é parábola sensorial de uma modernidade que viajou do antes. Nós sentimos o vento, sentimos a espera, sentimos o desconforto, sentimos a verdade, sentimos a força do questionamento ainda que esta seja inteiramente ficcional. É sutil e com controle total de sua direção. Parece que nada está fora do lugar. De que tudo foi sistematicamente arranjado.
Mesmo com todo esse realismo “Até Que a Música Pare” não perde a esperança na humanidade e na expectativa de que o mundo se tornará melhor. Talvez a chave de tudo seja o chimarrão. Deve ter alguma coisa ali que os dê mais atitude e calmaria. E assim, como no livro “Ensaio Sobre a Lucidez”, de José Saramago, a personagem principal daqui ganha consciência, sai da letargia do apenas existir até morrer. Agora, ela quer mais. Quer coisas diferentes. Quer vencer a timidez, a submissão, o medo e a dor. Quer ser mais fluída. “Até Que a Música Pare” usa a redenção do micro intimista para exemplificar o macro. Este é um estudo de caso da transformação de uma pessoa, de uma geração mais antiga (massificada) que aceitou ouvir possibilidades de uma geração mais jovem (menos presa nas tradições de domínio popular). Cristiane Oliveira, que se junta a seu marido Gustavo Galvão para escrever o roteiro, não abandona neste sua predileção em aprofundar questões familiares em processos de mudança. Em suas obras, nenhuma das personagens recebe nada pronto. É preciso entrar na jornada solitária dos novos conhecimentos, mas nunca tentando tornar o outro, outro, apenas sendo uma andorinha que implode para explodir.