As Últimas Estrelas do Cinema
Cinema, ou o Homem Imaginário
Por João Lanari Bo
Os filmes, máquinas de duplicar a vida, convocam os mitos heroicos e amorosos para encarnar na tela, e começar de novo antigos processos imaginários de identificação e projeção de onde nascem os deuses (Edgar Morin)
“As Últimas Estrelas do Cinema” é um precioso documentário em seis episódios, cada um com cerca de uma hora. Nessa era de fruição proporcionada pelo streaming, não parece muito: mas, será que passar o rodo na vida de dois astros do cinema, Joanne Woodward e Paul Newman, comporta isso tudo? Mergulhando no material que o diretor (e ator) Ethan Hawke organizou, não resta dúvida que sim, poderia até ser mais longo, devido à maneira como Hawke enquadra a teia de memórias agrupadas em torno das duas personalidades. O mundo do espetáculo, a indústria do espetáculo, isso que os americanos inventaram na aurora do século 20, atualizando os formidáveis mitos gregos, como percebeu Morin, também é… espetáculo.
A espinha dorsal aqui é um amplo conjunto de entrevistas com os principais protagonistas e seus epígonos, família, amigos, admiradores, enfim, sobre as vidas e as carreiras de Newman e Woodward, e sobre os 50 anos de casamento. Como disse a filha de Hawke, são três os personagens deste filme: o casal e a relação entre os dois, em si mesma também uma personagem. Tudo começou quando Paul Newman convocou um velho amigo, Stewart Stern – dramaturgo e roteirista, entre outros de “Juventude Transviada”, o clássico que Nicholas Ray dirigiu em 1955 – para gravar depoimentos da dupla e pessoas próximas, em fitas K7. O projeto era um livro de memórias: em 1991 Newman teve um acesso de autocrítica e interrompeu as gravações.
Alguns anos mais tarde, a caminho de uma pescaria com uma de suas filhas, parou em um lixão e queimou todas as fitas. Tudo estava perdido, não fosse pela diligência de Stern: antes que Newman se tornasse piromaníaco, conseguiu transcrever todas as fitas, centenas de páginas que sobreviveram, entrevistas com pessoas famosas e não famosas, de boa ou má fama. Sidney Lumet, Martin Ritt, Gore Vidal, George Roy Hill, Robert Redford e a primeira esposa de Newman, Jackie Witte, foram alguns dos entrevistados. O calhamaço chegou a Ethan, que teve a feliz ideia de dar vida às palavras transcritas com a ajuda de alguns colegas: Laura Linney lê as palavras de Joanne Woodward e George Clooney, as de Newman. E mais: Zoe Kazan como a primeira esposa de Newman, Jackie McDonald; Josh Hamilton como George Roy Hill; Bobby Cannavale como Elia Kazan; o diretor Tom McCarthy como Sidney Lumet; e Brooks Ashmanskas como um Gore Vidal irônico e arrogante, como sempre. Tudo isso via Zoom, em plena pandemia.
Se alguém resolver organizar um festival de filmes da pandemia, “As Últimas Estrelas do Cinema” será um forte candidato ao grande prêmio. À encenação vocal dos depoimentos, Hawke agregou clipes de filmes e diálogos contemporâneos, íntimos (as filhas) e colegas de profissão. Vida pessoal e profissional: oscilamos entre esses polos, harmônicos e desarmônicos. A escolha de Hawke é envolvente e sedutora: inspirada talvez no documentarista Ken Burns – que gosta de usar atores lendo textos selecionados sobre sequência de fotografias – produz uma sensação curiosa, como se estivéssemos vendo (e ouvindo) alguém de fora e de dentro ao mesmo tempo. Paul e Joanne se conheceram em 1953, batalhando para arranjar um papel na peça “Pinic”, na Broadway. Na época Newman era casado, com três filhos: depois de cinco anos de um affair sexualmente tórrido, como ambos gostam de frisar, Newman finalmente deixou a esposa e foi viver com Joanne, com quem teve mais três filhas. A separação foi mal resolvida, como todos reconhecem, e deixou sequelas – o filho do primeiro casamento, Scott, morreu de overdose de drogas em 1978.
A longa permanência de Newman e Woodward nas telas atravessou várias fases do show business nos EUA: a década de 50 e a influência do Actor’s Studio, a ascensão da TV, o vigor do teatro na Broadway, os anos 60 e a consciência social, a década de 70 e a nova Hollywood. Radicais mudanças de comportamentos: sexo, ativismo político, drogas, gênero – e o cinema, máquina de duplicar a vida, captando obrigatoriamente tudo isso. As carreiras de Woodward e Newman seguiram velocidades diferentes – ela, presa à família, brilhou menos – mas ambos compartilharam um solo epistemológico fundamental: o método, como é conhecida a técnica de interpretação desenvolvida por Lee Strasberg no famoso Actor’s Studio, modelada a partir de Konstantin Stanislavski. Resumindo, se é que é possível: atores fazem uso de experiências de suas próprias vidas para aproximá-los da experiência de seus personagens, exercícios de memória emocional ou afetiva, como dizia Strasberg – sempre envolvendo a recordação de sensações que tiveram impacto psíquico significativo.
James Dean e Marlon Brando, igualmente egressos do Actor’s Studio, foram rivais de Paul Newman, que passou a vida sentindo-se inferior à dupla, et pour cause. Mas Paul também foi um grande ator, assim como Joanne Woodward, como depreende-se do extenso painel apresentado em “As Últimas Estrelas do Cinema”.
Antes de morrer, Newman teve mais um acesso de autocrítica: jogou seu smoking numa fogueira perto de casa, em Connecticut.