As Cores e os Amores de Lore
A linha e a cor
Por João Lanari Bo
Festival É Tudo Verdade 2024
“As Cores e os Amores de Lore”, de 2024, elegante documentário realizado por Jorge Bodansky, tem um foco preciso: a vida e a obra da pintora Eleonore Koch. Lore, como era chamada pelos amigos, conheceu a mãe de Jorge, Rosa Bodansky – ambas eram judias alemãs, e deixaram a Alemanha para escapar do nazismo, na fatídica década de 30, quando Hitler ascendeu ao poder. Nos anos de 1950, trabalharam na livraria Cosmos, em São Paulo. O cineasta cruzou por acaso com uma referência à artista e sua mãe – não sabia quem era Eleonore, foi atrás e surgiu o desejo de fazer o filme.
Bodansky passou os últimos cinco anos de vida de Lore fazendo entrevistas, na intimidade do lar, com acesso a farto material iconográfico. A pintora faleceu em 2018, deixando 15 horas de material gravado. Como sugere o título, “As Cores e os Amores de Lore”, trata-se de uma investigação dupla, sobre as minúcias do fazer artesanal da pintora – que ocupa hoje posição de destaque no mundo da arte – e também sobre as vicissitudes e os sucessos de sua vida amorosa. Lore não se casou, teve muitos amantes e uma vida livre. Para ela, entre o destino previsível da vida de casada, preferiu a instabilidade afetiva, ou a solidão, para dedicar-se à pintura.
Como menciona o diretor – ele é o narrador do filme, comentando e circunstanciando os fatos apresentados – naquele tempo, no mundo germânico pós-guerra, prevalecia um certo liberalismo, sobretudo nas famílias de intelectuais. Era o caso de Lore: filha de pai advogado e mãe psicanalista, ligada ao círculo de Freud, sua formação era fruto desse ambiente. Adelheid Koch, a mãe, veio a ser um dos pilares da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Meus pais eram pessoas generosas, afirma, sem afetação.
A recapitulação de vida que a artista elabora transparece a segurança de quem submeteu-se à psicanálise e fez suas escolhas à medida em que amadurecia. Segurança que não elimina hesitações e incertezas: a relativa tranquilidade com que responde às perguntas não esconde as dificuldades que encarou. “As Cores e os Amores de Lore” passa para o espectador essa trajetória, sem sobressaltos, mas errática. Há uma clara relação de confiança entre ela e Bodansky, que soube respeitar silêncios ao mesmo tempo que realçava o processo criativo da artista. Durante nossos encontros, falamos de tudo. Era como se eu pudesse conversar com ela as coisas que eu não tive maturidade para conversar com a minha mãe em vida, disse o cineasta.
Eleonore Koch foi uma pintora rigorosa, ao estilo de Morandi, o genial artista italiano. Através de seu analista, Theon Spanudis, grego nascido na Turquia que emigrou para o Brasil, conheceu Alfredo Volpi, naquela altura já um celebrado (e recluso) pintor. Spanudis também era crítico e colecionador de arte. Com Volpi, Lore largou a pintura a óleo e passou a usar a têmpera – técnica de pintura que utiliza um aglutinante à base de água, geralmente ovo, misturado com pigmento, amplamente usada antes da popularização, com os pintores renascentistas, da tinta a óleo. O resultado é uma pintura opaca e dura, com cores vibrantes e menos suavidade na transição entre tonalidades.
Os belos planos de detalhe das pinturas em “As Cores e os Amores de Lore” ilustram a potência e a poesia da têmpera. Eleonore praticamente não pintou figuras humanas: foram paisagens, cenários, poucos objetos. O crítico Paulo Venâncio Filho descreve sua pintura como um espaço às vezes quase onírico, sonho, que a ausência da figura humana acentua, impõe ao espectador modos da observação mais demorados, em suspenso, fora do tempo, encantatórios. Uma contemplação em que linhas e cores sedimentam-se no aparelho perceptivo de quem assimila aquele trabalho. Uma contemplação, contudo, que não é passiva, como sugere outro crítico, Lorenzo Mammi:
A relação que sua (Lore Koch) pintura estabelece com os objetos representados se desvia de uma atitude contemplativa. Vê-se que é do constante embate entre as superfícies de cor, trabalhadas com o auxílio da têmpera, e os objetos nitidamente representados, que se faz a tensão permanente de seus quadros.
A carreira de Eleonore não foi fácil, recusada inúmeras vezes em bienais e galerias até se firmar, que ocorreu quando morou por duas décadas em Londres. Entre seus amantes está o escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes – Lore lembra a sessão que assistiram juntos de “Hiroshima, meu amor”, o clássico de Alain Resnais.
Nos momentos de dúvida sobre seu trabalho artístico, pensava: se eu não existia como pintora, então ia existir pelo menos como mulher – confessou a Bodansky, com um sorriso discreto.