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Aqueles Que Ficaram

Lidando com a dor ao estilo Soviético

Por Felipe Novoa

Aqueles Que Ficaram

PTSD, no inglês post-traumatic stress disorder, ou Síndrome de Estresse pós-traumático é uma doença psicológica que afeta pessoas que passaram por grandes experiências traumáticas e por conta disso não conseguem se recuperar completamente. “Aqueles que Ficaram” trata das experiências de dois cidadãos húngaros que se viram quebrantados pelos crimes cometidos durante a segunda guerra mundial.

Aladár (Károly Hajduk) e Klára (Abigél Szõke) são bons exemplos de como duas pessoas totalmente quebradas conseguem melhorar apesar do ambiente hostil em que se encontram. A atuação de Hajduk e Szõke é expressiva em seu minimalismo. Ambos agem como animais feridos. Aladár, chamado afetuosamente por Klára de Aldo, é um ginecologista judeu profundamente deprimido que sem família ou amigos próximos se encontra preso numa rotina tediosa e enfadonha, aparentemente sem grandes razões para continuar sua existência porém a continua com uma indiferença morna. Klára é uma estudante que não consegue aceitar a morte dos pais e a perda da irmã nas mãos do exército vermelho.

Ambos se encarapaçam e se fecham, incapazes de se importar com o mundo a volta, com o novo governo soviético, com os estímulos externos. Ambos estão fraturados, ambos precisam de apoio, ambos perderam parte de si na guerra. É nesse estado que o filme começa, Aladár atendendo Klára como paciente e ambos terem essa bolha em volta de si. A princípio não parece normal a forma como Klára se atrela a Aladár, mas ela vê ou sente algo igual nele que existe dentro dela.

Isso tudo, todo esse teatro/dança das cadeiras emocional parece forçado, mas apenas por esquecermos que ambos são pessoas socialmente inaptas. Nesse momento, lá pra uns 40 minutos de filme, que tudo encaixa. Klára não é irritante, apenas irritada. Ela tem um espinho na carne e na alma, espinho esse que só quem tem consegue ver. O espinho de Aladár está fincado na sua alma, ele está apático. Desde que foi liberado do campo de concentração ele vive empurrando a sua existência com a barriga.

“Aqueles que Ficaram” é um drama pesado, que trata da dor da perda e como as pessoas lidam com ela. É um filme honesto e complexo, que usa uma narrativa direta e sem firulas pra mostrar de forma fiel como duas pessoas se apegam e usam um relacionamento “normal” como ponte para estender essa normalidade para o resto de suas vidas. Ao longo do filme esse relacionamento se torna mais paterno e menos estranho e com um ar menos pedofilico (o que não rola no filme, nem é mencionado mas a ameaça no ar é palpável, a afeição de Klára é mais do que apenas de alguém que foi adotada e mais de alguém que quer ocupar um espaço mais central e matrimonial na vida de Aladár). Felizmente não tem nada de errado e salvo algumas interpretações ruins da parte da tia de Klára e da direção do colégio nada acontece além de um abraço mais intenso numa cena muito crítica.

Falando dessa cena crítica é bom mencionar logo toda a situação política do filme. “Aqueles que Ficaram” se passa em Budapeste entre 1948 e 1953, o que por si só já é um momento de grande interesse do ponto de vista social e histórico. O roteiro do filme consegue evitar comentários políticos apesar da sensação iminente de desgraça que o governo soviético deixa a população em geral. Já no fim do filme, Aladár parece ser dedurado por um antigo colega de profissão e passa por uma noite tensa que ele está pronto para encarar  o seu fim.

A direção de Barnabás Tóth é cuidadosa e precisa, nada parece forçado ou fora do lugar e todo o filme adquire um tom ponderado e contido. Pode ser que em alguns momentos isso faz com que o filme se alongue mais do que o necessário, mas todo esse clima arrastado é fundamental para criar o clima de cura lenta e penosa que o diretor quis manter. Sim, “Aqueles que Ficaram” é lento mas isso acontece intencionalmente, sem isso o timing teria sido quebrado e toda a aura maculada. A falta de trilha sonora na maior parte do filme ajuda a continuar essa vibe meditativa, durante os diálogos cada palavra nos acerta como um soco. Cada mínima implicação de uma frase e gesto é pesada e ruminada.

Finalizando essa harmonia temática temos a parte estética. A direção de fotografia e o design de produção fizeram um trabalho primoroso quando recriaram a Budapeste de mais de meio século atrás. Os tons baços de sépia do início do filme dão espaço para uma palheta mais pastel e alegre chegando no fim, um paralelo muito bem montado com o estado psicológico dos protagonistas.

No geral “Aqueles que Ficaram” é uma aposta sólida para melhor filme estrangeiro na próxima premiação da academia. Tenho o prazer de recomendar essa obra primorosa do cinema húngaro mas com a ressalva de que isso pode gerar o gatilho em alguns espectadores mais sensíveis. Nada é dito de forma grosseira ou explícita, mas o filme trata das mortes e da violência nos campos de concentração, trata de perder nossos entes queridos, trata de tentar se reerguer, trata de medo e trata de aprender a conviver em paz com a dor latente.

4 Nota do Crítico 5 1

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