Antologia da Cidade Fantasma
O natural em nome do sobrenatural
Por Adriano Monteiro
Filmes como “Bacurau“, de Kleber Mendonça Filho e “Nós“, de Jordan Peele, não se tornaram fenômenos cinematográficos de 2019 por acaso. Ambos se encaixam, ferozmente, no imaginário social a qual estão inseridos. Enquanto o conto nordestino perigoso de uma cidade do interior fotografa a realidade brasileira pela ótica da resistência de seu povo, a sátira estadunidense do Doppelgänger alemão faz jus as questões sociais americanas. Em “Antologia da Cidade Fantasma”, de Denis Côté, cineasta canadense, não é diferente, quando brinca com o cinema de gênero do terror com o objetivo de construir uma atmosfera única em nome de um alcance social global. Aqui estamos diante de um filme com textura, força e coragem suficientes de saltar do natural ao sobrenatural sem esforço, que permanece relevante mesmo com o absurdo de seus acontecimentos.
Por planos fixos de uma paisagem interiorana, filmados em belíssimo 16mm, o longa-metragem apresenta o desértico congelante do povoado de Iréné-les-Neiges, de não muito mais que duzentos habitantes. Com toda a crueldade de um cinema que pretende ser naturalista, o colapso de um carro em alta velocidade prenuncia o episódio que guiará toda a narrativa. O jovem Simon Dubé, de 21 anos, é vítima fatal do acidente. A morte é a primeira em muitos anos dentro da comunidade, o que traz uma novidade em como agir diante a uma situação trágica, sujeita a diversas opiniões e maneirismos típicos de uma cidade pequena. Todos se conhecem e parecem estar sobre o controle da situação. A prefeita Simone Smallwood, não cansa de afirmar a capacidade dos cidadãos de resolver seus próprios problemas, sem necessitar da ajuda de “estranhos”. A figura do “outro” é importante aqui à medida que ele é rechaçado por quase todos.
É impossível não relacionar o nacionalismo pulsante em todo o mundo, quando o longa pretende ser uma metáfora das mais fáceis a crise imigratória. O primeiro indício de assertividade quanto ao outsider é a rejeição escancarada da ajuda de uma assistente social muçulmana a saúde mental da comunidade. A prefeita, com isso, reitera as barreiras de seu domínio atuante como mãe de todos. A proteção é menos de valores do que de uma coletividade arraigada a própria terra. “Aqui somos todos adultos” é afirmação verdadeira, quando as crianças respondem a um contexto diferente da vida em comunidade. Aparecem como seres quase mitológicos no início do filme, sempre escondendo seus rostos com máscaras, para só depois o enredo encarregar de explicar sobrenaturalmente a aparição dessas figuras. Em uma cidade sem crianças a inocência se perde em meio a congelante neve de almas cegas.
A loucura é retratada, explicitamente, por Adéle, como a típica mulher suicida, amparada e rejeitada simultaneamente por todos. Logo, a personagem é a primeira a enxergar além dos seus domínios e perceber “algo lá fora”, ainda que assustador. No elemento sobrenatural, o filme agarra ao naturalismo sem fazer distinções cerimoniais do que é real ou fantasia, em um realismo provocante. É incrível a capacidade do longa de agarrar ao natural em benefício próprio. Destaque a trilha sonora quase imperceptível, somada com maestria aos sons ambientes. Tudo ao redor de “Antologia da Cidade Fantasma” parece parte de um todo orgânico vivo. Sem abusar das normas hollywoodianas do que é um filme de terror, o diretor vai para o caminho atmosférico ao criar sensações palpáveis ao público até mesmo pelo uso da película. Nada passa indiferente ao olhar do espectador, cada enquadramento instável parece respirar dos mesmos pulmões de quem assiste.
A experiência sem igual de acreditar no que está vendo se torna ainda mais mágica pela qualidade do roteiro de não explicar aquilo que não precisamos saber, mas que por um contexto social mais amplo, conseguimos inferir as reais metáforas inseridas. As conversas com o extracampo contribuem para o delírio coletivo de uma comunidade, que não sabe direito o que conversa, nem com quem. A naturalidade com o que os acontecimentos são elencados é cruel, quando pretende dizer que as circunstâncias mais bizarras podem e acontecem diariamente. Talvez, uma das grandes máximas de hoje, seja o “tudo pode acontecer”, ou melhor, para citar a famosa Lei de Murphy: “se algo pode dá errado, dará”.
E tudo acontece em “Antologia da Cidade Fantasma”, em um grande filme coral, sem protagonismo, sem explicações bobas, como uma grande fábula a cegueira contemporânea. É explicitado na narrativa a comodidade as maiores loucuras. Não importa se podemos ver os mortos andando por aí, ou alguém flutuando no ar. Desde que eles não tomem nossas terras, ou acabe com a tradição. É irônico o longa tratar do coletivo, como objeto, mas buscar pelos seus personagens soluções muito individualistas. Cada um responde falsamente a comunidade, procurando resolver o seu lado ao acontecimento. Desde ao desaparecimento do marido ao falar (literalmente) que vai comprar cigarros e nunca mais volta até a compra de um imóvel “mal-assombrado” e a fuga de mãe e filha para a cidade grande. Apesar de tudo responder a coletividade, o resultado vem do indivíduo e não em benefício da comunidade. Um belo retrato dos falsos moralismos de hoje.