Anticristo
Psychokiller
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2009
O Anticristo é uma figura profetizada na escatologia cristã como o principal opositor de Jesus Cristo, surgindo no fim dos tempos para se passar por salvador, enganar muitos e liderar as forças do mal antes do Juízo Final, embora a Bíblia (especialmente nas Epístolas de João) também o descreva como um espírito ou tipo de pessoa que nega a natureza de Cristo, um conceito explorado em diversas interpretações religiosas e na cultura pop, incluindo o polêmico filme de 2009 de Lars von Trier.
É dessa forma que a IA sintetiza o termo “Anticristo”, desde a longa maturação que se iniciou nos primórdios do cristianismo até a era contemporânea do consumo de mercadorias culturais. “Anticristo”, o filme, se relaciona a um grupo de produções da década de 1970: “O Porteiro da Noite”, “Império dos Sentidos” e “Salò”, todos relacionados à violência sexual e ao fascismo de meados do século 20. Hoje eles estariam classificados como torture porn, um subgênero gore, ou seja, conteúdo visual que exibe violência gráfica e explícita, como sangue, mutilações e cenas chocantes. Os adeptos da comodificação da arte espalhados mundo afora no universo sem fim da internet comprazem-se em segmentar essas categorias, chegando a relançar o trabalho de von Trier em sessões especiais Halloween.
Claro, “Anticristo” exibe empenho artístico e profundidade temática que ultrapassam em muito as fronteiras do torture porn – apesar de investir também em um sentimento de repulsa da audiência, como nos clichês do gênero, provoca igualmente uma incerteza intrigante diante do comportamento dos personagens, o masculino nomeado como “Ele” (Willem Dafoe), e o feminino, “Ela” (Charlotte Gainsbourg). Estamos em um “cinema de câmera”: a dupla vai atravessar três estágios identificados como capítulos, Luto, Dor e Desespero. O grau zero ocorre quando o casal faz sexo – inclusive com penetração explícita – e é observado pelo filho pequeno, que avança, sobe pela janela e cai. Sua morte detona um devastador processo de culpa n’Ela, racionalizado inicialmente por Ele, terapeuta profissional, de maneira convencional e obviamente insuficiente.
A intensidade dos atores é, sem dúvida, o ponto forte de o “Anticristo”. Ambos profissionais experimentados, de escolas diferentes, entregaram-se inteiramente ao projeto do diretor. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, foi uma troca intensa que materializou-se no set, no momento mesmo do drama. Segundo Dafoe,
Tínhamos muita intimidade no set, mas a verdade é que mal nos conhecíamos. Nos beijamos em frente às câmeras pela primeira vez, ficamos nus pela primeira vez com a câmera ligada. Tudo isso é pura encenação. Como nossa intimidade só existe diante das câmeras, isso a torna mais intensa para nós.
A câmera, isto é, o olhar de von Trier, construiu e testemunhou a relação sado-masoquista que se instalou no set. A coragem dos atores nessa entrega terá sido capaz de persuadir a audiência de que nossos semelhantes sejam capazes de crueldade ilimitada? A essa pergunta, de natureza teológica – Anticristo é espírito ou tipo de pessoa que nega a natureza de Cristo – corresponde o mundo de deformidades exteriorizado em volta do Anticristo, no caso a personagem feminina, lesada física e mentalmente. O comportament errático d’Ela – alterna agressão e arrependimento em relação ao parceiro, instabilidade localizada no processo de luto, segundo Ele, mas que logo escala para ansiedade destrutiva. Algo primitivo vive atrás da fachada da mãe que perdeu o filho, e pressiona para vir à tona.
Ela tem feito pesquisas sobre bruxaria, Ele menciona a tese que está sendo pesquisada. Ele insiste em levá-la para uma cabine isolada, de nome alegórico-religioso, Éden. A floresta abriga animais que são também humanos: a raposa fala – o caos reina. Enquanto isso, o estado d’Ela só piora, cada vez mais perturbado. As imagens alternam entre preto-e-branco e colorido, entre velocidades diferentes, entre pontos-de-vista alternados. A partir daí, desestabilizam-se as premissas do público no que toca a construções sociais: o homem patriarcal tem seu pênis esmagado pela esposa, que corta seu clítoris na sequência. Empatia visceral e dolorosa, sem dó nem piedade com o espectador.
Na exibição no festival de Cannes em 2009, depois de vaias e risos nervosos de uma audiência de 2 mil pessoas, um jornalista confrontou Lars von Trier na coletiva de imprensa, exigindo saber por que você faria este filme.
O cineasta sorriu com ironia. Sinto que todos vocês são meus convidados, disse.


