Andy Warhol – Um Sonho Americano
As perucas de Andy Warhol
Por João Lanari Bo
Sou uma pessoa profundamente superficial (Andy Warhol)
E chega aos cinemas mais um documentário, desta vez sobre um artista midiático, “Andy Warhol – Um Sonho Americano” – dirigido pelo eslovaco Lubomir Slivka, e produzido por uma produtora da Eslováquia, Attack Films. A primeira reação, obviamente, é de surpresa: porque diabos o registro de um mito recorrente da cultura pop norte-americana, a mais afluente do globo terrestre, que projeta delírios e obsessões em todos os cantos do mundo – inclusive na Eslováquia, pequeno país no leste europeu, com 5 milhões e pouco de habitantes – veio a ser concebido e realizado… na Eslováquia? A resposta pode ser encontrada na sinopse do filme, obtida no site da produtora:
Documentário sobre a vida e a obra de um dos maiores artistas contemporâneos, originário da aldeia de Miková, no leste da Eslováquia. Uma história íntima da família de Andy, sua ascensão na cena artística de Nova York, sua conquista mundial da fama, sua inspiração e influência em diversos estilos artísticos.
O pessoal da Attack Films encontrou, enfim, um caminho para penetrar no desejado mercado dos EUA – segundo o atual locatário da Casa Branca, o país que preside é uma loja de departamentos, uma loja de departamentos gigante, a maior loja de departamentos da história… todo mundo quer entrar e comprar de nós. A assertiva que não quer calar, por outro lado, é que todo mundo quer também vender, o que leva o incansável Trump a disparar tarifas disparatadas em todas as direções, até mesmo sobre filmes estrangeiros que querem entrar na terra do Tio Sam. “Andy Warhol – Um Sonho Americano” saiu na frente, driblou a tarifa e assinou contrato de distribuição mundial com empresa da California.
Trump atirou no que viu e acertou no que não viu – sobretudo em se tratando de Andy Warhol, um artista que sacudiu o sistema de arte dos EUA (e de boa parte do planeta) aplicando uma estratégia dessacralizadora do objeto artístico, despindo-o das filigranas auráticas impostas pela tradição ocidental e inscrevendo-o no fluxo desejante da economia de mercado. A afirmação pode soar um pouco pomposa, o próprio Warhol, embora profundamente consciente da sua práxis, definia tudo isso em termos mais populares – ser bom nos negócios é a arte mais fascinante, disse certa vez, com aquele ar indolente e (falsamente) despreocupado que adotou para sua persona pública. Como bom ilusionista (e provocador), também dizia um artista é alguém que produz coisas que as pessoas não precisam ter.
Obviamente Warhol não foi o único arauto desse tipo de estratégia, é provável que no seu íntimo sentisse uma profunda inveja por Marcel Duchamp, o campeão do desdém criativo pela arte, a quem, sublinhe-se, Andy idolatrava. Mas, a despeito da interminável polêmica em torno da valoração artística do seu trabalho, se é arte ou não é, se atende a categorias do belo artístico ou não, o fato é que usar latas de sopa Campbell para uma exposição em Los Angeles, em 1962, o tornaram famoso e mudaram, segundo críticos respeitáveis, o gosto artístico nos Estados Unidos.
Há, é inegável, uma inteligência aguda em tudo o que Warhol fez e/ou agenciou. Das ilustrações para revistas de moda, ao embarque na arte pop, às serigrafias de celebridades, aos filmes underground – e até mesmo no cálculo (falsamente) indiferente com que cultivou sua presença nos meios de comunicação (e não haviam redes sociais no seu tempo). Operar uma inserção como essa em um sistema de arte como o americano é um feito extraordinário, muito poucos lograram. Por sistema de arte entenda-se um colossal volume de dinheiro investido em museus, galerias, publicações, reconhecimentos, prestígio – poder, enfim. Que Andy Warhol foi um dos artistas mais poderosos atuando nesse sistema, é algo insofismável: se isso se traduz em excelência artística, são outros quinhentos, como diz a sabedoria popular.
E aí chegamos a “Andy Warhol – Um Sonho Americano”, o singelo filme eslovaco. Pontuado por entrevistas de familiares e amigos – alguns, como um sobrinho de Warhol, encarregam-se de puxar o tom revelatório dos segredos de Andy – o documentário escorrega para uma linguagem convencional hagiográfica. As diversas fases e obras entram nessa celebração como ilustrativas da personalidade sui generis de Andy, que teria sido sobretudo moldada pela herança eslovaca e vivência infanto-juvenil em Pittsburgh, centro metalúrgico e polo de atração de imigrantes. Andy Warhol e o documentário conformam-se em uma narrativa das origens, como se isso tivesse uma relevante importância no seu trabalho – e não tem, claro.
Para tentar dar uma aparência institucional, curadores e integrantes da esfera cultural da Eslováquia também comparecem. Até um ex-Ministro da Cultura arrisca uns palpites sobre a ruptura nas artes produzida por Warhol.
O saldo final é um tanto desalentador. Mas, em pelo menos em um aspecto o filme é revelador: a calvície dos antepassados de Andy, inclusive do pai. Sabemos que o ícone pop, atormentado pela calvície hereditária precoce, passou a usar perucas compulsivamente cedo em sua carreira, uma espécie de assinatura proteica no próprio corpo. Todo dia acordava e colava na cabeça uma das centenas perucas que possuía, branca, prateada, loura, mista, o que desse na telha.
Andy Warhol, esperto, percebeu que elas, assim como sua arte, eram tanto uma máscara quanto um statement – uma camada protetora e um meio de expressão.