And So It Begins
Herança Maldita
Por João Lanari Bo
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Afinal, como pode uma ditadura exercida a ferro e fogo, como a de Ferdinand Marcos nas Filipinas, ressurgir através de uma vitória arrasadora, em 2022? Esse é um dos temas do documentário “And So It Begins”, de Ramona S. Diaz, finalizado em 2024, que recapitula a campanha presidencial daquele país, opondo o filho de Marcos, Ferdinand “Bongbong” Marcos Jr, à ex-Vice Presidente Leni Lobredo – Marcos Jr venceu, com 58% dos votos, e Lobredo ficou com 28%. Uma campanha carregada de fake News, com o candidato à direita usando sem nenhum constrangimento a herança paterna como ativo eleitoral, além de contar com o apoio do então Presidente Rodrigo “Digong” Duterte, um dos personagens mais loquazes e inacreditáveis que se tem notícia na cena política mundial.
O primeiro parágrafo do verbete de Ferdinand Marcos pai na Wikipedia é sucinto e contundente:
Ferdinand Marcos (1917- 1989) foi um político, advogado, ditador filipino, e cleptocrata que serviu como o décimo presidente das Filipinas de 1965 a 1986. Ele governou sob lei marcial de 1972 a 1981 e manteve a maior parte de seus poderes de lei marcial até ser deposto em 1986, classificando seu governo como “autoritarismo constitucional”. Um dos líderes mais polêmicos do século 20, o governo de Marcos era famoso por corrupção, extravagância e brutalidade.
Corrupção, extravagância e brutalidade, não necessariamente nessa ordem, foram as características da era Marcos. Assassinatos, desparecimentos, bilhões de dólares obtidos sabe-se-lá-como, barras de ouro, a maior coleção de sapatos do mundo (da mulher Imelda) e até condecorações falsas – é uma lista interminável. Ferdinand e Imelda Marcos detinham o Recorde Mundial do Guinness do maior roubo governamental em décadas, embora o Guinness tenha retirado o recorde numa revisão periódica, curiosamente feita algumas semanas antes das eleições de 2022. Tudo isso, ao que parece, não foi capaz de provocar a menor hesitação na massa de votantes que aderiu a “Bongbong” Marcos Jr. “And So It Begins” passa boa parte do tempo numa espécie de circularidade temporal sem encontrar razões plausíveis para esse verdadeiro masoquismo sócio-político, que se retroalimenta através dos tempos.
O filme fornece pistas, naturalmente, mas insuficientes. Focado na campanha liberal da candidata Leni Lobredo – exaltando indisfarçadamente seu endosso a pautas identitárias, ao combate à corrupção, aos valores democráticos, aos direitos humanos – “And So It Begins” perde de vista o contexto que paira sobre o exercício político em um país complexo como as Filipinas: mais de 115 milhões de habitantes espalhados em sete mil ilhas, colonizado (brutalmente também) por Espanha e Estados Unidos, e imerso numa zona conflituosa, como foi na 2ª Guerra Mundial e segue valendo atualmente, com a ascensão da China. A campanha de Lobredo, capaz de atrair cerca de 800 mil pessoas no comício de encerramento, não conseguiu, entretanto, sair do nicho liberal – e propiciou o retorno do clã Marcos ao poder.
“And So It Begins” explora, ainda que de modo superficial, duas variáveis para explicar o processo. A primeira é o uso da mídia social como instrumento político – a família Marcos passou décadas reescrevendo a história desde que foi forçada ao exílio em meados da década de 1980, conseguindo, através das redes sociais, recolocar-se como heróis da nação. Obviamente, não foi apenas isso: a disseminação de desinformação que infectou as redes sociais contra Robledo foi pesada, e a própria candidata admitiu que sua campanha cometeu erro crasso ao não abordar as mentiras online mais cedo. A admissão foi feita à jornalista Maria Ressa, vencedora do Prémio Nobel da Paz – uma das melhores imagens do documentário mostra Ressa atendendo chamada da Noruega, quando foi informada do prêmio, concedido em 2021.
A outra variável que poderia fornecer mais indicações para entendimento, ainda que parcial e incompleto, da derrota acachapante de Robledo, é a influência que o então Presidente Duterte exerceu nas eleições. Portador de um narcisismo patológico que desafia as ciências psiquiátricas, Duterte havia rompido com a então Vice-Presidente Robledo logo no início de seu mandato e acabou apoiando Marcos. Uma das primeiras cenas do documentário mostra Duterte falando em um evento público, com seu estilo informal populista e misógino, fazendo troça da viuvez de Robledo, que estava presente – no inventário de boçalidades proferidas por Presidentes, onde se destacam alguns personagens na história recente em nosso continente, sul e norte, as palavras de Dutarte se sobressaem. É inacreditável o que ele fala.
E não apenas na verbalização: ele se vangloria dos assassinatos extrajudiciais de usuários de drogas e outros criminosos em seu governo, tendo confirmado várias vezes ter matado pessoalmente suspeitos de crimes durante seu mandato como prefeito de Davao.
Em tempo: uma das poucas referências externas de “And So It Begins”, citado em comparação a Dutarte, é o nosso ex-Presidente Bolsonaro.