Amigo Secreto
O microcosmo (cinematográfico) político continua
Por Ciro Araujo
O panorama atual do cinema brasileiro, quando se observado em ampliação o aspecto político, é deveras curioso. Isto se dá pela produção massiva de filmes, encontrada no estado catatônico da democracia contemporânea no país. “Amigo Secreto”, novo filme da cineasta Maria Augusta Ramos, é mais um documentário que persegue por novos buracos deixados na história recente brasileira, já tão filmada graças à facilidade de captar em vídeo tudo que ocorre. Para mais, o trabalho da cineasta então é transportado no que agora é muito mais uma questão de seleção e curadoria – montagem – e finalmente entregar ao espectador a síntese do resultado do que é a maior operação policial do Brasil: a Lava-Jato.
É claro, é improvável não correlacionar o novo filme de Maria Augusta com seu anterior “O Processo”, uma visão extensiva do trabalho jurídico da então presidente Dilma e o julgamento sobre o impeachment. O cerne da obra também foi representado em suas outras produções da filmografia da cineasta; A burocracia, o aspecto institucional cerca do indivíduo, se há um real processo que os pressiona. O olhar é movido exatamente por um caráter de dentro, pouco lúdico, talvez até técnico. Por mais que exista um claro interesse de facilitar a linguagem para cima da audiência, a sobreposição é difícil. Direta, mas pesada. Pois bem, as tendências de montagem propostas vão finalmente em outro viés dentro do microcosmo político-brasileiro das décadas de dois mil e dez e vinte.
Apesar de nos encontrarmos em 2022, as franjas da década passada ainda se sobressaem em dez transformadores anos. Então eis que, diante desse universo cinematográfico – talvez do Impeachment? –, uma continuação mais técnica faz-se talvez seu sentido, seu próprio caminho. Petra Costa já realizara com sua clássica narrativa pessoal, lenta e caracterizada pela semi-morbidez; Lô Politi junto com sua companheira Ana Muylaert, realizaram “Alvorada”, o interessante retrato que puxa o indivíduo antes do Estado. Outros cineastas também já tiveram sua cota de representar o caos gerado e tentado representar o porquê chegamos aqui. Provavelmente a saturação do tema também tenha provado como é difícil realizar um documentário, de caráter político, sobre a contemporaneidade. Mas enfim, volta-se para o trabalho de Maria Augusta, em “Amigo Secreto”: como realiza-lo? A decisão é optar pelo caráter seco, dessa vez ainda mais técnico, deixando-se levar por situações cotidianas. Toques de Eduardo Coutinho, que pincelam através das cenas de jornalistas entre El País e The Intercept, fundamentais para desbravarem a mecânica corrupta da entidade direitista que se acomodou no Brasil.
Paciência dada, as cenas possuem um vazio que não parece se completar. As conversas distribuídas, por mais que possuam a exclusividade de sua existência pela gravação em si se passar dentro dos editoriais, não perpetua para além. A tela serve apenas como um simulacro do que já vemos pela Internet. Inclusive, a cineasta insere em vários momentos, como técnica, cenas de jornalistas que assistem falsas telas, representando na cena o observar de situações políticas que estão públicas pelo mundo virtual. Novamente, a questão de coletar e selecionar, realizar a montagem do filme. Muito no que o filme se orbita está na questão do trabalho jornalístico e complexidade que o país começou a se construir. O que foi proposto como forma de contornar toda essa realidade já previamente recontadas milhares de vezes por outras diretoras – inclusive por Maria Augusta – parece apenas exatamente o que todos possuíram acesso. Pode-se argumentar pela democratização do acesso, que o filme atingiria certa população sem acesso à Internet, mas a realidade parece assumir outro aspecto: a improbabilidade do público-alvo através do funil que o cinema brasileiro se encontra na distribuição ser composto de quem previamente não possuíra conexão às redes. Parece uma afirmação muito estigmatizada, uma suposição que troca o caráter do texto crítico.
Realmente, através de suas duas longas horas de duração, “Amigo Secreto” parece estar longe de trazer em sua linguagem uma novidade, nem também encontrar muito seu escopo. O corpus bizarro, que parece centrado tanto na figura de Bolsonaro, tira justamente o gatilho que antes introduzia um roteiro envolvente na obsessão de Sérgio Moro e associados. De fato, o atual presidente do país traz diversos questionamentos que se entrelaçam no que é comparável à poeira de estranhezas. A estética da direita é realmente formidável – de uma forma negativa – mas Maria Augusta não consegue conduzir sem se perder, sem encontrar a lógica engajante. Nos encontramos, finalmente, no decorrer de seu filme, perdidos, escutando jornalistas, militantes, advogados. Todos balbuciando palavras para caracterizar de suas formas esses últimos anos políticos, como se já não tivéssemos ouvido-as ou exprimindo-as em alguma discussão ou momento de conversa. De fato, o brasileiro parece estar em uma neblina histórica, mas talvez a resistência ou análise se encontre melhor quando se desprende de certos comodismos.