AmarAção
Entre pimentas, feitiços e DRs
Por Fabricio Duque
Estreia nos cinemas brasileiros durante esta pandemia que parece não ter fim, o filme “AmarAção” é o que podemos chamar de um exemplar integrante do Novíssimo Cinema Realista, iniciado, muito provavelmente, pelo cineasta-dramaturgo Domingos de Oliveira, e que se manifesta como se fosse uma lente de aumento da própria realidade, especialmente por sua fotografia de amadorismo estético (que personifica “possessões”, o real e/ou a metalinguagem da quarta parede), conduzida por uma ficção de improviso guiado, em que os acasos tornam-se molas propulsoras de novas ações. É uma comédia de situações, que amalgama a verdade direta com a mentira fantasiosa da criação.
“AmarAção”, ainda que “viaje” literalmente em suas escolhas de um livre roteiro, desencadeando no espectador uma sensação de intimista pertencimento caseiro, acontece pelo desprendimento espirituoso das psiques. Aqui, o amor é traduzido por discussões de relacionamentos, entre motivações idiossincráticas, decisões afobadas e missões racionais. Nós somos convidados a participar de vidas normais envoltas em questões afetivas. Só que “AmarAção” vai além ao embarcar no universo invisível da “amarração”, de “trazer a pessoa amada em 24 horas”. Trabalhos macumbeiros, uma possível loucura (por sintomas físicos e psicológicos – paralisia nas mãos; vozes escutadas ; alucinações) e as pendências mal resolvidas de um amor não acabado bem. Amor assombrado e “enfeitiçado”.
Dirigido pelos diretores e roteiristas franceses Eric Belhassen (do documentário “Por que você Partiu”) e Marc Belhassen, da produtora Boca a Boca Filmes, “AmarAção” é também sobre liberdade geográfica. A que dá poder, tranquilidade e permissão de se ir sem o drama do ficar. Aqui, Brasil, França (barco em Paris) e Israel (Muro das Lamentações) são conectados pela busca de respostas. Esse novíssimo cinema realista de atuação independente, como por exemplo, “Vermelho Russo”, de Charly Braun, com a atriz Martha Nowill, que integra o elenco deste filme em questão aqui junto com Caco Ciocler, judeu na vida real, que neste explora novos conhecimentos em terreiros de candomblé. No macro, “AmarAção” pode soar um pouco o “samba do crioulo doido”, mas na verdade sua força está nesta desconstrução surreal toda. Em filmes assim, o poder vital está em seus atores, que unem o surto criativo com a veracidade do resultado final. O segredo talvez esteja em intercalar amadurecimento dos diálogos com vulnerabilidades infantis, tornando todos adolescentes em potencial, movidos à cultura, músicas, sentimentos, euforias e desilusões românticas. A de buscar algo que não se sabe, mas que se quer acima de tudo.
O título do filme “AmarAção” não só brinca com a palavra afrancesada (“gringos não conseguem falar os dois erres”), como filosofa de que para amar precisa ter ação. E que a rotina tira a vontade de continuar. De que é preciso “escolher” se “deixa de existir para o outro” ou se “abandona o outro”. Outra filosofia de “casa de bar entre amigos” é: um relacionamento não aprisiona e sim permite disciplina na hora de tomar decisões, porque “pensamos em duas pessoas agora”. Sim, ao longo do filme é impossível não se desvencilhar da vivência teatral Domingos de Oliveira de ser, que se resume em dar lógica ao que não se entende, simulando fraquezas, ingenuidades e poesias coloquiais.
“AmarAção” é uma divertida comédia. Despretensiosa e que se deixa acontecer se procurar definir e ser nada. Uma crônica sobre dois casais prestes a separar acompanhados de próximos ainda mais solitários, que veem neles a possibilidade de “colar” para se protegerem das próprias existências. Cada um ali alimenta resquícios vinculados, fundindo energias para não chegar ao momento do confronto: o novo do deixar ir e sentir a página em branco do recomeço. Aqui, todos se tornam atores: o filho, a vendedora da loja, a diarista. Dessa forma, atores e recém-atores fazem acontecer a ambiência estranha das conversas e contemplações.
“AmarAção” tem um que desse novo cinema francês, tem também um que de Cinema Novo, tem um que de imagem destoada, mas tudo junto gera toda essa epifania descabida e de ritmo moderno, ainda que pareça atemporal. É a vida como ela é. Uma mistura de Carlos Drummond de Andrade com Nelson Rodrigues, com pimentas vermelhas de uma estética mais realista, que transborda os próprios limites da cena. O filme cumpre seu propósito e missão de não se aprisionar e assim pode sim se comportar moderninho demais quando “cola” referências de vida pessoal de seus atores com a das personagens, protocolarmente ficcionais. Sim, “AmarAção” está em fluxo contínuo de movimento.