Alexandria
Ágora
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2009
“Alexandria”, produção espanhola que o chileno Alejandro Amenábar dirigiu em 2009, tem tudo o que um luxuoso produto hollywoodiana requer: cenografia e figurinos de época, falado em inglês com sutil acento britânico, interpretações calibradas, emoções históricas, mas…tem um problema: o que o filme mostra é tão próximo ao que acontece hoje, em 2009 e mais ainda em 2021, que o desconforto do espectador é quase uma inevitável armadilha. Nos Estados Unidos, quando lançado, a recepção foi fria e a distribuição, pífia: a crítica, em sua maioria, desqualificou a obra. Mas, como? Uma hipótese é que o filme trata de uma época em que a erudição do mundo clássico caiu na Idade das Trevas, quando a razão e o intelectualismo foram postos de lado pela superstição, pela ignorância intencional e pelo extremismo religioso, quando os livros foram queimados, o conhecimento ridicularizado e o livre pensamento esmagado. Qualquer semelhança com fatos reais e atuais é mera coincidência: se a história é uma sucessão de ciclos que se alternam e se anulam, ou uma repetição de fatos e dramas transfigurados em farsa – não tem saída. A perseguição implacável que a matemática, filósofa e astrônoma Hipátia sofreu no início do século 5 da era cristã é uma metáfora concreta do que se passa, em alguns cantões da consciência planetária, nesses tempos de pandemia. Mesmo com todas as licenças dramáticas a que estamos acostumados no entretenimento audiovisual – supostos desvios históricos na adaptação da vida de Hipátia, romantização dos personagens, manipulação dos eventos – tudo isso é perdoável, nessa fita de 2009. Hipátia nos devolve, nem que seja por um átimo, a confiança na justeza de pensar, de raciocinar, ainda que o pensamento se revele errado. O exercício da razão, enfim.
Uma pena que no Brasil o título escolhido – “Alexandria” – escamoteie o original, “Ágora”, utilizado, a propósito, em Portugal. Ágora era, no mundo grego antigo, a praça da cidade, o local de encontro de mercadores e também de debates públicos: em resumo, a esfera pública, o espaço onde se confrontavam posições, onde se construía a democracia. A estreiteza mental dos nossos distribuidores cinematográficos eliminou na largada a chave conceitual do filme: o cinema é, ou deveria ser, uma instância fundamental da esfera pública. Mesmo travestido de roupagens hollywoodianas, é possível operar a identificação catártica com Hipátia, encarnada com competência por Rachel Weisz. Sim, Hipátia foi uma criatura real, que nasceu no século 4 e morreu no seguinte, em 415. Filha de matemático, um famoso intérprete de Euclides, era bonita e inteligente: seus cursos em Alexandria eram altamente concorridos, falava de astronomia num mundo em que a centralidade da Terra ou do Sol no universo eram temas controversos da filosofia e da teologia – ou seja, especular sobre astronomia era um ato perigosamente político. Teria sido ela quem primeiro conjecturou sobre uma órbita elíptica da Terra em torno do Sol. Hipátia não deixou escritos, certamente queimados pela multidão enfurecida: o que sabemos sobre ela nos chegou através de testemunhos dos seus contemporâneos, espalhados em cartas, comentários, notícias, narrativas. Seu ascetismo é legendário: um dos episódios inscritos na tradição é quando rejeita um pretendente, confrontando-o com seu lenço menstrual como evidência gráfica do erro manifesto de sua atração. O pretendente, no filme, é Orestes – provavelmente uma licença dramática, não se sabe a quem foi dirigida a mensagem – ele também um personagem histórico, ex-aluno da filósofa que se converteu ao cristianismo e tornou-se governador de Alexandria, no Egito dominado pelo império romano em decadência.
“Alexandria”, o filme, se passa num período turbulento: hordas de cristãos fanáticos destroem bibliotecas e templos, judeus são perseguidos e reagem, romanos pagãos lavam as mãos e o rolo compressor do comando eclesiástico do cristianismo emergente passa a régua. Hipátia, ligada a Orestes, é pega no fogo cruzado: o bispo Cirilo, outra figura histórica, queria liquidar os inimigos da fé e virar santo (de fato, virou). Sua milícia de 500 monges atacou primeiro Orestes, chamando-o de “idólatra pagão”: a filósofa era a próxima. Um dia, em 8 de março do ano de 415 da era cristã, Hipátia saiu de sua casa para um passeio pela cidade. De repente, encontrou seu caminho bloqueado por uma “multidão de crentes em Deus”, como conta uma testemunha. Eles ordenaram que ela descesse da carruagem. Sabendo o que havia acontecido recentemente com seu amigo Orestes, deve ter percebido enquanto descia que a situação era grave.