O Drama da Realeza e a Hollywood Progressista
Por Michel Araújo
Na animação da Disney “Aladdin” de 1992, um jovem ladrão de rua encontra com uma princesa que se disfarçava de plebeia e deste encontro surge um romance baseado na verdadeira pureza de seus corações, ao invés de um casamento de fachada entre dois membros da realeza por meras questões de tradição. E embora a década de 1990 já não fosse tão pueril ou ingênua, para o grande público – crianças, em geral – não era uma importante demanda que uma animação infantil amparasse certas problemáticas envolvidas em romantizar a aristocracia e a realeza. As animações tinham, até então, o propósito de fabular, se entregar a um mundo das mais extremas ficções para o divertimento e encantamento de pequeninos espectadores ainda em processo de formação cultural. Avançamos quase 30 anos no futuro. Em 2019 é lançado um remake dessa obra que tanto encantou jovens e crianças, e assim como toda a enxurrada de refilmagens, adaptações para live-action e todo o tipo de repaginação das obras clássicas, o interesse principal é capitalizar em cima dos fãs que já foram conquistados ao longo desses quase 30 anos. Público esse não mais composto de pequenos infantes, mas de adultos – ou no mínimo adolescentes tardios -, com uma bagagem já adquirida e um senso crítico bem estabelecido. Este é o verdadeiro grande público alvo, aqueles que efetivamente já conhecem o tão amado “Aladdin” (1992). E apesar do tocante de um filme da Disney ter uma orientação crítica parecer para alguns uma forçada argumentativa, o próprio filme demonstra ter consciência disso – como trataremos a seguir – porém não envereda para o melhor dos caminhos.
Em “Aladdin” (2019), dirigido por Guy Ritchie, o enredo se mantém quase intacto. Em termos gerais podemos admitir que é precisamente a mesma história, retrabalhada na lógica de live-action (atores reais, ao invés de animação). A experiência essencial – em se tratando do público familiarizado com o filme prévio – é reviver a história sob uma diferente estilística, ouvir os clássicos “Noite da Arábia”, “Correr Para Viver” e “O Mundo Ideal” interpretados por novas vozes, assim como ver as coreografias encarnadas nos corpos de atores reais (desprezando é claro o advento de computação gráfica). De fato essa revitalização é uma experiência emocionante. O elenco principal – Mena Massoud como Aladdin, Naomi Scott como Jasmin, Will Smith como o Gênio azul, e Marwan Kenzari como o vilão Ja’Far – são todos escolhas interessantes, e suas performances trazem um pouco do esperado, mas também algo de diferente. São mais sólidos, humanos, certamente não possuem as feições tão caricatas quantos personagens de banda desenhada, e isso pode ser visto com bons ou maus olhos dependendo da receptividade do público a algo diferente. De certo a atuação que chega a mais surpreender é a de Naomi Scott, em especial na performance da canção inédita “Speechless” (canção essa que atrai, inclusive, o tópico dos valores morais revisados – ou não – nesse estreante remake).
Ao longo do filme o drama de uma realeza em desconexão com seu povo é assumido pela Princesa Jasmin, e simultaneamente certas provocações são feitas com relação ao efetivo papel de um governo. A comparação rasa porém preocupante feita por Ja’Far de que: “roube um pão e você é um ladrão, roube um reino e você é um estadista” parece querer passar despercebida em apontar para o figura do Estado como corrupta em sua própria essência. Somado a isso temos o diálogo entre Aladdin e Jasmin sobre o distanciamento desta com o povo de Agrabah, no qual ela irá se lamentar do povo não saber quem ela de fato é, ao que Aladdin responderá algo em torno de: “quando você é da realeza as pessoas tem dificuldade de ver quem você realmente é”, romantizando um ideal fantasioso do que na verdade é governo monárquico aristocrata. E será que pode-se argumentar em favor dessas problemáticas colocações políticas alegando se tratar de um filme que não tem objetivos críticos? Reside aí uma má concepção do filme como alheio às questões do presente porque ele efetivamente mergulha numa delas com sua nova canção “Speechless”, que não constava na trilha do filme original, e que trata explicitamente da questão da liberdade de expressão feminina. A composição de uma música que especificamente vai tratar de uma questão social duma pertinência que se tornou indiscutível nos últimos anos revela que o filme tem sim, consciência de seu tempo, porém escolhe abraçar apenas uma pequena parcela de politização, que vai mais na via de um identitarismo que uma crítica pontual.
Como qualquer produção de um grande estúdio – neste caso a Disney – faria, “Aladdin” (2019) vai se apropriar de uma certa causa que mais tem a ver com um apelo individual do que uma aberta e bem direcionada crítica, por saber que seu público alvo é tocado por essas questões. A mera presença de um tema pertinente num filme ou série de televisão sempre trouxe um grande problema para o debate audiovisual que é: muito se fala sobre o tema, e pouco se fala sobre a obra em questão, e se esta de fato dá conta do tema de uma forma coerente e construtiva. Em se tratando da própria questão de liberdade de expressão feminina o filme se estabelece num contexto completamente fantasioso que não aponta para a efetiva resistência necessária no mundo real para a emancipação da mulher. Por apenas e tão somente representar esse problema – mesmo que num contexto da mais pura ficção -, muito provavelmente a parcela do público que compadece com a causa poderá recobri-lo de elogios, quando na verdade ele não dá conta de um debate tão profundo e pertinente por apenas comercializá-lo numa fábula infantil. E é curioso que o filme escolha tratar de liberdade feminina tendo sido dirigido por Guy Ritchie, ex-marido da ícone feminina mor da cultura pop, Madonna, que após o divórcio o acusou justamente de ser controlador e limitar sua liberdade expressiva e artística enquanto eram casados. Assim como no auge do movimento #metoo em 2018, um astro como Gary Oldman – com um longo histórico de agressão doméstica – fora presenteado com um Oscar, aqui novamente reside a questão: até que ponto Hollywood realmente está preocupada em mudar alguma coisa? Provavelmente até o ponto em que essa preocupação não desestabilize seu mercado consumidor.