Águas Profundas
O olhar incógnito
Por Pedro Mesquita
No célebre romance de Gustave Flaubert, “Madame Bovary” (1856), Emma Bovary é uma jovem mulher que mantém relações fora do casamento. O seu marido, Charles, não faz a menor ideia da vida dupla que leva a mulher, que se relaciona com diversos amantes ao longo da narrativa. O mais importante deles talvez seja o jovem Léon, por quem Emma nutre uma fortíssima paixão. Para visitá-lo, ela usa o pretexto de aulas de piano; chega até a fazer o marido assinar cheques que supostamente pagariam as aulas, quando na verdade esses se destinam ao jovem.
Vemos uma situação parecida no mais novo filme de Adrian Lyne, “Águas Profundas” (2022): Melinda Van Allen (Ana de Armas) é uma jovem mulher que mantém relações fora do casamento. Típica “esposa troféu”, ela se sustenta graças à fortuna de seu marido, Vic (Ben Affleck) — aqui, percebemos como certas características do mundo de Flaubert perduram até hoje. Até mesmo o motivo das aulas de piano reaparece: um de seus amantes é um pianista, e Melinda o sustenta através de cheques assinados sem a ciência do marido.
No entanto, ao contrário de Charles Bovary, Vic tem conhecimento das aventuras da mulher. Quando perguntado sobre isso, ele argumenta não ser “como os outros homens”, que aprisionam suas mulheres e não as deixam conhecer outras pessoas. Vic parece em paz com a sua escolha de deixá-la livre, mas será que por trás do seu semblante tranquilo ele esconde insatisfação? Essa é a pergunta que o filme coloca ao espectador em seu primeiro ato.
Em “Madame Bovary”, o universo da obra nos é dado pelo ponto de vista de Emma; o narrador nos revela o tempo todo o estado mental da personagem, seus pensamentos, suas vontades… em suma, Emma é um objeto conhecido pelo leitor. Já em “Águas Profundas”, observamos uma postura oposta: Melinda é um objeto desconhecido pelo próprio marido, pelo narrador e pelo espectador. No início do filme, Vic se incomoda com a sua expressão ao chegar em casa e lhe lança a pergunta “o que foi?”, ao que ela responde “nada”. O seu olhar contradiz a resposta: conseguimos perceber que existe algo a inquietando, embora não saibamos dizer o que; percebemos que aquele olhar quer dizer alguma coisa, embora o seu significado não nos seja apreensível.
Apesar do enlace matrimonial, Vic e Melinda desconhecem um ao outro; daí o motivo da crise no casamento. O olhar de Vic também suscita dúvidas: na primeira festa do filme, em que Melinda é vista se agarrando com um jovem cabeludo, o semblante de Affleck, sempre na fronteira entre a resignação e a raiva, nunca nos deixa entender o que se passa na mente da personagem. Ele decide confrontar o jovem: confessa, em tom de brincadeira, que assassinou o último homem que ousou tornar-se “amigo” da sua esposa.
A partir daí, a dúvida que paira é outra: seria Vic um assassino? Novamente, o filme não faz senão retardar a resolução dessa dúvida. Na cena em que Charlie, o tal amigo pianista, é morto, tudo nos leva a crer que Vic será o assassino, até que o momento crucial é elidido e voltamos à dúvida. Somente no terceiro assassinato, quando o filme de fato mostra Vic empurrando um dos tais amigos despenhadeiro abaixo, temos a confirmação diegética da sua culpa. Ele volta para casa aliviado, e a sua felicidade surpreende a esposa; é nesse momento que o casamento dos dois começa a dar a volta por cima.
A partir daqui começa a ficar evidente um certo descuido com a dramaturgia do filme: Melinda, que até então o odiava pela morte do amigo pianista, recebe Vic de braços abertos diante do menor sinal de felicidade; “você não está entediado?”, ela pergunta aliviada, como se a crise conjugal estivesse em vias de se resolver (apesar da não-resolução das tensões previamente colocadas pelo filme, como a própria morte do amigo). De repente, o olhar de Melinda, que até então era misterioso, ganha significação: é um olhar amigável. O final do filme representa isso perfeitamente bem: repete-se a mesma cena do início, mas com uma diferença: as personagens agora entendem o olhar umas das outras. O casamento se salva porque Melinda agora conhece o seu marido, sabe como fazê-lo feliz, e a recíproca também é verdadeira.
O final cumpre bem o seu papel; “amarra” bem as pontas do filme; confere-lhe um sentido. Por que, então, o seu impacto é diminuto? Talvez porque tudo aquilo que o antecede é marcado por uma oscilação inexplicável entre opostos que não combinam. O filme mistura sem muito sucesso drama e comédia (pensemos na irrupção de momentos insanos, como a perseguição final, que nada combinam com a austeridade daquilo que o antecede); realismo psicológico e caricatura (a personagem de Tracy Letts ou a de Lil Rel Howery parecem não pertencer ao mesmo mundo do casal); propõe-se a ideia de um thriller erótico, mas o erotismo é praticamente todo elidido.
Escolhesse o filme um caminho em detrimento do outro, provavelmente o sucesso seria maior. Mas em meio a tantas contradições, não há filme que se sustente: “Águas Profundas” não vai para um lugar nem para o outro; é, portanto, um filme perdido.