Acqua Movie
A submersão de um filme
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
É quase lógico constatar que todo e qualquer filme é uma experiência pessoal de um realizador, ainda que adaptado às convenções sociais, as famosas zonas de conforto do não-ir-tão-longe-assim-pela-invenção. “Acqua Movie”, de Lirio Ferreira (que já imprime uma personificação adjetivada e etérea por causa do nome do próprio diretor), exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2019, após passar pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, apresenta-se como uma viagem metafísica de alguém em busca de algo adormecido tempo demais.
Sim, nossa sociedade (nos incluindo, visto que fazemos parte) temos uma imensa parcela de culpa: a obrigatoriedade da “missão” evolutiva que nos causa uma dormência existencial, assim, matamos felicidades e prazeres (mesmo que simplistas) a fim de compactuar com o equilíbrio da maioria. Que cada vez cega mais o olhar às essências e a seu próximo, destruindo solidariedade e dignidade e colocando no lugar um desenfreado individualismo. Essa é uma das características do cinema de Lírio: mesclar lirismo coloquial com orgânico conceito.
Dessa forma, o espectador embarca em um manancial de crônicas-esquetes de vidas observadas, de tipos típicos, resignados em sua imutabilidade e na maneira de ser-agir. “Acqua Movie” é um portal tridimensional às tóxicas entranhas sem leis do interior dominado por modernos “reis”, que mandam e desmandam vulneráveis a deus dará. O longa-metragem busca uma imersão distanciada pela encenação de um teatro mais improvisado, quase primitivo, intensificado pela câmera que capta as profundezas do solo. Há assim uma descontinuidade da percepção, que fragmenta a narrativa ao ampliar um que de digressão-epifania (só que sem atemporalidade e tampouco suspensão da modernidade).
“Acqua Movie”, com roteiro de Lírio Ferreira junto com Marcelo Gomes e Paulo Caldas, nos estimula a mergulhar em uma ancestralidade perdida, de inocência ultrapassada e de incompatibilidade com a contemporaneidade, tudo pelas imagens sensoriais e em transe que “filmam o invisível”. É um cinema com estilo mais direto, menos sentimental e mais sensivelmente crítico a não permissão de se entrar no mar de Recife por causa dos ataques dos tubarões. Aqui, a pré-adolescente “Surfista Prateado” usa óculos 3D para sentir estar nos “tubos cavernosos” da água. Há um que de “Fim de Festa”, de Hilton Lacerda, e também de “Piedade”, de Cláudio Assis. Talvez porque todos bebam e se retroalimentem das mesmas ideias, das mesmas questões inquietantes e dos mesmos “sonhos fragmentados”. Os movimentos da câmera são arquitetados e metafóricos à conclusão de que “São Paulo também não tem mar”.
O longa-metragem é também um documento simbólico, especialmente por suas frases. “Aquele que escreve também é aquele que é escrito”, diz-se uma delas. Quanto mais adentramos na história, mais percebemos uma necessidade quase urgente de libertar o próprio tempo e as missões condicionadas e impostas do dia-a-dia. Como “ninguém deixa o tempo do luto”, a pressa-volta de retomar projetos na Amazônia e a “obrigação” de ter que “recuperar” o filho, traduzido por sofridos cortes rápidos da edição e câmeras espreitadas. Isso faz com que os discursos-diálogos fiquem mais forçados, mais artificiais e mais anti-naturalistas. Vivenciamos quase uma subjetividade amadora e falsa, esta embasada no objetivo de libertar a própria ideia de liberdade.
Durante esta experiência road-movie, Lírio é mais lírico quando cria vidas em suspensão. Há também uma crítica muito mais pululante e insurgente: a de se viver no interior, em que “nesse lugar, a água é sua melhor amiga”. Primeiro pela falta, depois pela qualidade. “Deus é mais” do caminhão resume a condução do caminho. Entre o hotel futurista e a buchada de bode, reverbera-se a dicotomia. Uma contradição de projeção, realidade, veracidade e hipocrisia. E como dizia Legião Urbana, “mentir para si mesmo é a pior mentira”.
“Acqua Movie” é um dispositivo contra o pré-conceito e/ou tudo aquilo que foi massificado por anos à fio. Ensina-se aqui a olhar um índio e não o segmentá-lo “na sus própria aldeia”. Outros portais surreais e estranhos são abertos ao espectador, fazendo com que estes seres exóticos “sobrevivam à lucidez”. É uma análise antropológica de comportamento humano-cognitivo, elencando-se como um estudo pela Metafísica de Aristóteles.
Sim, não é fácil dosar simplicidade sem cair nas graças da ingenuidade, e, por sua vez gatilhos comuns narrativos (ainda que apresentados como transgressores e de vida orgânica): o prefeito de nome Cícero; a maconha, a cocaína na Bíblia, os discursos de efeito, a inclusão social da manifestação dos indígenas, tudo é explicado, didático e com uma pitada de histeria. Pois é, a necessidade de se forçar o ser acaba causando resultado exagerado. A máxima já explica: “menos é sempre mais”.
Há ainda mais um portal que se abre: o do simbolismo do fim do mundo e de sua cidade mítica Atlantis, que aqui ganha viagem cinematográfica à moda do início do filme “Titanic”, de James Cameron. Os papos continuam vindo do nada, quase sem sentido, soando um simplismo que incomoda (principalmente pelas interpretações mais aceleradas e taquicardiacas), apesar da poesia da imagem, que por si só já constrói o cenário perfeito. Aqui, o silêncio ganha mais força. E o tempo expande-se em alumbramento, com seus rituais de purificação do espírito. Uma das frases finais do filme diz que “tem cenas que a gente não sabe explicar, mas tem que fazer”. Talvez esta seja o encerramento preciso desta crítica: um filme que se desenvolve sem se explicar e sem buscar explicação.