Aconteceu na Quarta-Feira
Viver a plenitude da existência
Por Fabricio Duque
O dramaturgo-cineasta Domingos Oliveira (dos icônicos “Juventude” e “Todas as Mulheres do Mundo”), que nos deixou recentemente, sempre conseguiu transcender a própria arte cinematográfica ao criar obras de crônicas poetizadas, adulando, na realidade de ficção orgânica, filosofia e coloquialismo; classicismo e modernidade; barroquismo e popular. Sua narrativa de amadorismo caseiro dá mais importância ao conteúdo que a própria forma. Mais essência e menos embalagem, igual as apresentações da Comédia Francesa.
Seus diálogos espirituosos e de perspicácia aguçada soam surreais e teatrais e encontram semelhanças com a verdade falada, desconcertante e constrangedora, do nova-iorquino Woody Allen. Seu último filme estreia agora nos cinema, “Aconteceu na Quarta-Feira”, exibido no Festival do Rio 2018, tem um que de Frank Capra, de buscar resiliência na transgressão do próprio conformismo. O ato da reclamação ranzinza estimula a catarse da sobrevivência. Dia após dia. O longa-metragem aqui acontece no vernáculo, na literatura rebuscada do instante, que se confronta com a hesitação pretensiosa. Busca ser o que na verdade não se quer ser, sem se dar conta que o que vivemos já está impresso em nos mesmos.
“Aconteceu na Quarta-Feira”, produção original do Canal Curta!, traduz-se como um “teatro ilustre”, em que o “som tem temperatura e cor”. “Quando descobri que não podia viver duas paixões ao mesmo tempo, quase me matei”, diz-se com humor-gaiato potencializado ao sarcasmo vitimado-dramático. É uma fábula-metalinguagem com trilha de Mozart e com Jazz, dependendo do estado de espírito e das consequências emocionais do “estilo canastrão”. A câmera, direta, quase agressiva, ora desconstruída (como no pé), ajuda a recriar uma sessão de terapia participativa e convidada. Um “divã com muitas imagens deturpadas”.
O filme lança a ideia do duplo (Doppelgänger), que metaforiza a personificação do fenômeno psíquico que questiona a moral filosófica, dentro de uma “escola de predadores”, em que possibilidades existenciais são mais que possíveis e infinitamente permitidas. Não há maniqueísmos, tampouco escolhas unilaterais. Gostar ou não de mulheres, como por exemplo. É um ensaio conceitual pululado de tons irônicos. Ingenuamente ameaçadores, como, por exemplo, quando se acredita que a “miopia é uma benção, porque vê melhor”. Sim, argumento já abordado na obra “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago.
“Aconteceu na Quarta-Feira” é sobre “aprender imitando os bons”, confessando “seus talentos”em fusões prolongadas, quase etéreas. “Timidez é misantropia”, continua com suas precisas definições de efeito. O espectador é embevecido na condução da verborragia. De “teatro ser um teatro da psicanálise”. É também uma ode ao amor incondicional do amar. “Eu amo quando me amam”, completa-se expondo fragilidades e vulnerabilidades, que transformam cada ser em humano. Cada indivíduo social em pessoa. São as “excentricidades de um autor imberbe” com seus monólogos de “peças desprezadas”.
É tudo sobre a vida, sobre a metáfora da divisão do próprio desejar, sobre o momento em que está e sobre o existir analisado, desenhado respeitosamente pelo pessoal (fotos de Domingos – que tem no nome a experiência sensorial da espera deslocada e briguenta nos domingos – de não terminá-lo, mas sabendo que a segunda é inevitável). É maduro. Seu alterego, um “fanfarrão”, que “viaja” por anedotas, trocadilhos, pensamentos em voz off, repetições, cores estéticas, “coisas de Deus”, conversas intelectuais (“adjetivadas pela palavra perfeita”) e por detalhes contados. “Acostumar-se, senão perde o juízo”. É uma sensação metafísica de “copo pela metade”, que somos convidados a adentrar (nos tornamos a câmera, a visita e a testemunha), como um vulto espreitando. “Demônio é uma espécie de um homem que sofreu muito e ficou mau e com maldade menos literária”, diz-se sendo “dramáticos propositais”.
“Aconteceu na Quarta-Feira” é sobre a arte acima de todas as coisas. De “ser ator porque acredita nas palavras”, de “abrir portas”, de libertar quereres, projeções e sonhos. Tudo isso está no filme: “prostitutas e viados, os papéis mais simples”. “Sem paixão não há teatro”, afirma-se com sagacidade, liberdade, sinceridades passionais e sem nenhuma sensibilidade moral. O longa caminha na referência e na dramaticidade de forma impecável. De “visitar iluminadores de Curitiba” até o “Querida, cheguei!” da “Família Dinossauro”. Busca-se criticar a busca da cura. De permitir a dupla personalidade. É um poço de sensações: do humor natural de zoação, da anti-naturalidade para criticar a ação, do “narcisismo complexo e vazio”, chegando a “Bergman debochado” (que fazia “sexo com ele mesmo”).
É um delírio persecutório. De alimentar loucuras arquitetadas por “petelecos” e paranoia. Tudo não passou de uma alucinação? Uma picardia psicotrópica? Com Maria Bethânia e “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, o surreal ganha mais forma real. É “tornar o impossível, possível”, é resgatar “deuses” e esperar a morte com graça e vivendo muito. Com esquizofrenia para afastar os normais e conservadores, a fim de conservar o fluxo não limitado e filtrado de pensamentos mirabolantes. “Aconteceu na Quarta-Feira” é um epitáfio irretocável de nunca se permitir ser menos.
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