A Religiosa
A Freira Desafortunada
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2013
“A Religiosa”, longa que Guillaume Nicloux dirigiu em 2013, é um exemplo de cinema que nasce de um ímpeto anticlerical, mas acaba aterrissando no conformismo pós-moderno que caracteriza nossa época neoliberal. Inspirado no livro que Denis Diderot escreveu no século 18, às vésperas da Revolução Francesa – portador de um germe revolucionário insidioso e premonitório – o filme investe num psicologismo pretensioso emoldurado por imagens cativantes, porém vazias. A comparação com a obra-prima que Jacques Rivette dirigiu em 1966, com o mesmo título e também a partir do texto de Diderot, é inevitável. Se o filme de Rivette foi uma ode à liberdade dos seres humanos (e das mulheres em particular) de escolherem o próprio destino, tal como propunha o texto literário, a produção de 2013 gerou uma narrativa que parece preocupada em manter distância prudente e neutra dos acontecimentos – e anulando a força transgressora da obra do filósofo e escritor do Século das Luzes.
Mesmo a talentosa Isabelle Huppert, que faz a madre superiora do segundo convento onde a desafortunada Suzanne Simonin (Pauline Etienne) se instala, não logra superar a pasmaceira geral. Seu devaneio lésbico é um processo convencional, torturado e pessoal, longe das premissas que orientaram a personagem da versão de 1966 (e muito menos do livro). Rivette e seu co-roteirista, Jean Gruault – a exemplo do cineasta, egresso do Cahiers du Cinema – adaptaram fielmente o texto literário, extraindo os momentos fulgurantes da trama e segurando o vigor original. Diderot começou a escrever em 1760 – mas o romance só veio a público em 1796, postumamente, quando a Bastilha já havia caído e a cabeça do rei Luís XVI guilhotinada (Diderot morreu em 1784). A Igreja Católica, que na França flerta com um perfil tradicionalista, fustigou como pôde ao longo dos anos, mas a obra acabou se impondo.
Mesmo assim, dois séculos depois, o filme de Rivette não escapou da censura – em 31 de março de 1966, Yvon Bourges, Secretário de Estado da Informação do governo Pompidou (o Presidente era Charles De Gaulle), proibiu a exibição de “A Religiosa” no território francês! (a distribuição nas salas de cinema só ocorreria um ano depois, em 1967, depois de longa batalha judicial). Em 2013, nada disso aconteceu – Nicloux filmou “A Religiosa” e ninguém se ofendeu, pelo contrário, a fita foi incluída no rol de “filmes de prestígio” da produção cinematográfica francesa, ou seja, baseada em autores clássicos.
Afinal, o que há de ofensivo nessa narrativa? Suzanne Simonin, a personagem principal, foi forçada pelos pais a fazer votos para tornar-se freira, já que sua existência e possível casamento prejudicaria os dotes de suas duas irmãs. Suzanne é filha ilegítima e sua mãe espera, ao afastá-la, expiar seu pecado de adultério (que o marido desconhecia). A saga de Suzanne é inelutável – desejosa de quebrar os votos, é impedida de fazê-lo, sofrendo incontáveis humilhações físicas e morais por parte das freiras do convento onde se instalara, por instigação da madre superiora.
Inspirada em fatos reais – uma freira que solicitou ajuda para escapar do claustro onde estava detida contra a sua vontade – a história é construída através das cartas que Diderot e alguns próximos imaginaram a partir desses fatos e enviaram ao amigo comum Marquês de Croismare, um homem de boa-fé. Por diversas razões, incluindo dissensões internas e conluio com a nobreza, os conventos franceses no século 18 deixaram de ser exclusivamente um espaço de reclusão religiosa para se transformarem em locais de abrigo de mulheres jovens vítimas de situações embaraçosas, envolvendo casos amorosos fora da norma, até estupros, ou então um simples problema familiar. Se na primeira comunidade religiosa em que Suzanne foi “internada” prevalecia uma restrição irracional e consequente repressão, na segunda a atmosfera era contaminada por uma libido patológica – concentrada, no filme de Nicloux, na personagem de Huppert.
Talvez fosse mesmo uma empreitada quase impossível realizar uma versão fiel de “A Religiosa” na sociedade de consumo fetichista em que vivemos – filmes passados em conventos com freiras reprimidas à beira de um surto sexual tendem a serem identificados como itens de um subgênero erótico específico, onde se acumulam uma infinidade de produções, sobretudo a partir dos anos 70. “O Convento das Taras Proibidas”, feito em 1979 pelo infalível Joe D’Amato, é uma das matrizes dessa série infame – e ostenta nos créditos nada menos nada mais do que Denis Diderot como co-roteirista!
Enquanto isso, do outro lado da cidade (e do tempo), Suzanne conseguiu escapar do convento. Viveu seus últimos dias assustada e escondida, enfrentando as agruras do mundo real.