A Paixão Segundo G.H.
A metamorfose de uma existência
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2023
Quando a escritora ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector lançou sua obra “A Paixão Segundo G.H.” em 1964, ela não imaginaria que sua história fosse transposta ao cinema de forma tão poética e etérea pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho, o mais metódico, mais estético e que mais transcende a própria imagem. E tampouco que sua personagem principal fosse “possuída”, literalmente, pela atriz Maria Fernanda Cândido. Sim. E ainda há quem diga que seus livros são fáceis de traduzir. Não, não são, pelo contrário, visto a quantidade de camadas existencialistas, que flertam explicitamente com o absurdo possível, com a realidade desmembrada nas ideias-pensamentos surreais e críveis (ao mesmo tempo), com a fantasia que evoca a metáfora da vida e seus símbolos pululantes de nossas sinapses mentais. Toda essa complexidade está na versão cinematográfica de “A Paixão Segundo G.H.”, que ganha a forma quase ipsis litteris, pela literalidade de suas palavras, de suas ações e de suas “viagens” a um psicológico-psicodélico.
Sim, tudo poderia dar muito errado nesta narrativa de forma extra-física. Mas aqui seu diretor não só soube diretor utilizar todos os artifícios da imagem, como a personificar todo esse invisível que suspende a realidade por um delírio-ópera de pensamentos caóticos, porém sincronizados na loucura. O longa-metragem é uma experiência visual de abstração à concretude do palpável, por luzes, sombras, desfoques e seus sons atravessados. “A Paixão Segundo G.H.”, que foi todo realizado em película 35mm (revelado no laboratório Tecnicolor em Nova Iorque), apresenta-se com um formato de tela semelhante a de uma nostálgica e perdida fotografia antiga. Aqui, capta-se todas as concepções das emoções da personagem. Suas angústias, seus medos, suas manias, sua “organização profunda” e suas narrações são representadas (e ainda mais, reconstituídas) por uma imagem de elegância fabular, saturada a uma etérea fantasia realista e a um efeito tormento insípido da liberdade. Todo esse exercício de linguagem traz um complexo conceito a ser analisado pela cognição. Toda a performance (pela necropsia perfeccionista e identitária), de existencialismo na intimidade, da atriz Maria Fernanda Cândido, como já foi dito no parágrafo anterior deste texto, quer a catarse, quer a entrega máxima de “arrebentar a vida diária” e de ser “uma réplica perfeita”.
“A Paixão Segundo G.H.” é um estético espetáculo imersivo, que evoca os simbolismos mais inconscientes, os quartos abertos, por exemplo. Esses impulsos intensos movimentam as ações e reações do pensar. Por isso, este é um filme de situações, moduladas e alteradas pelo comportamento das sinapses cerebrais, que ganham vida própria. Há aqui uma mulher sob influência, “ganhando” possibilidades, histerias e “reconhecimento das esperas” numa racionalização de suas estranhezas mais internas, em que o “imundo”, o “nojento”, o “visceral”, o “infernal” são absorvidos a própria experiência orgânica e deixam de ser convenções de sentido social. Essa natureza em observação-cobaia ressignifica percepções já automatizadas. A barata aqui, que causava o asco nervoso da ojeriza, torna-se agora um galã, alterando a ideia maniqueísta da beleza, sendo microscopicamente exposta pela câmera-close, ora em negativo, mas sempre estilizada. São duas baratas “sem nariz”, “encrustada em uma”. Ela e a barata estão em metamorfose. Em mudança de paradigmas, paradoxos e pragmatismos. “A Paixão Segundo G.H.” é sobre a transformação nossa de cada dia. De tentarmos incessantemente nos livrar de nossas prisões diárias.
“A Paixão Segundo G.H.” traz a neurose escatológica da “vida olhando’. Da “delicadeza dos iniciados”. Dessa ingenuidade quando começamos o caminho. Desse amor que ainda era “tédio, inexpressivo e não humano”. Desse “mundo que não dependia” dela. Tudo aqui é um confronto. Uma batalha com o sagrado, com a desistência, com a coletividade, que “vomita a vida inteira”. “Perdi algo que era essencial”, ela diz. Sim, “A Paixão Segundo G.H.” quer a desconstrução da mensagem auto-ajuda. Quer reposicionar atitudes-entranhas em busca da liberdade total e incondicional. Luiz Fernando Carvalho, que estudou arquitetura e literatura (isso talvez ajuda a entender a mise-en-scène de palavra construída na imagem), e que levou mais de vinte anos para lançar este filme, imprime aqui uma obra universal de perguntas. É uma invasão de um desconhecido (que já tivemos contato em algum momento) que quer nos salvar pela desconstrução de nós mesmos, inclusive de uma “empregada dispensada”. Por que a barata é tão temida? E para essa barata, o que somos? Se a natureza é assim, qual o motivo de tanta incompreensão e medo anestesiado? “A Paixão Segundo G.H.”, assim como a terapia freudiana/lacaniana não oferece respostas, visto que é um filme para sentir de forma única e exclusivamente subjetiva.