A Migração Silenciosa
Se encontrar no outro
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
As diferenças físicas de Carl (Cornelius Won) se destacam em meio ao padrão fenotípico hegemônico da Dinamarca. Sua herança coreana, portanto, não passa desapercebida, é acompanhada de olhares que dizem muito sem nada falar, e sempre o relembra do processo de adoção. Lidando silenciosamente com isso, o jovem se sente deslocado em um lugar onde ele não se reconhece nos outros e que, de quebra, a monotonia impera. Sua rotina repetitiva também reflete o marasmo: as mesmas experiências, as mesmas tarefas, as mesmas vacas para ordenhar. A única exceção é a presença do estudante Andrzej (Dawid Sciupidro), companhia com idade mais próxima que o tira desse ciclo diário. A diretora Malene Choi, sul-coreana adotada por uma família dinamarquesa, se vale de inspirações autobiográficas para desenvolver o não pertencimento em “A Migração Silenciosa“, longa que faz parte da Competitiva Internacional do Festival Olhar de Cinema 2023 e esteve na Panorama do Festival de Berlim 2023.
No campo, Carl acorda cedo para auxiliar seu pai Hans (Bjarne Henriksen) e sua mãe Karen (Bordil Jorgensen) nos cuidados da fazenda da família. Recém saído da faculdade, ele retorna para casa e nesse retorno se sente cada vez mais diferente e menos inclinado a assumir a fazenda da família. A abordagem da diretora constrói uma gradação no desconforto e no consequente anseio de deslocamento. A urgência para conhecer lugares novos e pedir isso como presente não surge apenas “porque a Dinamarca é muito pequena”, mas também pela vontade de se encontrar, de se reconhecer por meio do outro. A mise-en-scène de Choi reflete formalmente essa sensação. Nas cenas internas, a câmera adota um aspecto estático que reforça a imobilidade de Carl no ambiente familiar, uma espécie de sufocamento sutil involuntário. Em contrapartida, nas externas, a câmera se movimenta com panorâmicas lentas que reforçam a vastidão do espaço, trazendo essas infinitas possibilidades de destinos que estão na mente do protagonista.
“A Migração Silenciosa” é uma obra que se dedica ao minimalismo cênico e expressivo. Seria um equívoco, no entanto, negar sua dramaticidade, a qual permeia a obra em todo momento, embora sem os diálogos habituais, ou mesmo os confrontos típicos do cinema de filhos adotivos que querem conhecer a família biológica. Assim, os sentimentos de Carl se desenvolvem por meio de uma interiorização muito marcada, não há espaços para transbordamentos dramáticos ou confissões dos sentimentos. Se por um lado essa decisão criativa provoca de certa forma um intimismo ainda maior com o personagem, pelo outro, a ausência da potência dramática leva o filme a um redemoinho interno de desejos inconfessos, furtivos e guardados pelo próprio protagonista. A sensação geral é que precisaria de um pouco mais do que isso para gerar impacto significativo.
Malene Choi, apesar de se ater ao isolamento do personagem por meio da fotografia – que o enquadra solitariamente no quarto ou espiando os papéis de adoção – e do roteiro, estabelece um momento-chave para retratar o não-pertencimento. Na festa, as bandeiras da Dinamarca contrastam com os traços orientais de Carl, contraste que inclusive é reforçado em comentários intolerantes de um membro da própria família. Se nesse espaço tudo faz do protagonista mais distante, ele finalmente se vê no outro. Marie (Clara Thi Thann) também é adotada, também é imigrante. Após esse encontro em que nada é dito, o exercício de alteridade promove uma conexão instantânea, um imediato reconhecimento, e um compartilhamento de experiências, coroado pelo gesto delicado do deitar no ombro. Nessa perspectiva, a direção poeticamente se aventura em um olhar metafísico, em que projeções e fantasmas ocupam a mente de Carl. Nessa duplicata da realidade, a conexão espiritual é mais um elemento a exercer no personagem o desejo de partir, de viver paixões e encontrar o passado.
“A Migração Silenciosa” é um longa que desenvolve seu discurso por meio da introspecção, porém perde oportunidades de promover um aprofundamento dramático das situações. O silêncio de Carl é condizente, não há alguém para confidenciar, mas a passividade dos pais é no mínimo curiosa. Então, a internalização dos conflitos e o esvaziamento dramático que predominam na obra acabam prejudicando a potência do que é construído. A temática inesgotável do não-pertencimento, da adoção e do desejo de conhecer as origens poderia, sim, ser mais aprofundada. Embora eu entenda a intenção por trás da condução minimalista de Choi, ela ainda me distancia do protagonista, que parece tomar para si e nunca compartilhar com o público suas dores. A inventividade, por outro lado, se sobressai. Através desses fantasmas, que estão vivos no Mundo das Ideias, Carl parece ser impulsionado para viajar, seguir seu sonho e, por fim, se encontrar no outro.