A Mãe de Todas as Lutas
Um tutorial para melhorar seu adubo
Por Fabricio Duque
Canal Curta!
O novo milênio parece viver um paradoxo. A necessidade da reinvenção psicossocial pela descontrolada e frenética pressa-urgência imposta. Se uma, para se construir, precisa da mais pura calma (evocando o transe da natureza-terra ancestral), a outra nos atropela com suas obrigações industriais em prol de um robótico progresso só reservado aos mais “fortes”, aos que se “adaptaram” ao novo sistema e aos que conseguiram “ressignificar” suas danças pelo poder do dinheiro. A simplicidade humanista deu lugar ao trator insensível. A documentarista Susanna Lira (leia aqui o Especial sobre a diretora) não só vivencia essa experiência, visto que é parte integrante e atuante (questionando com seu cinema a problematização estrutural da História de nosso país – não buscando a causa, mas abrindo portas temáticas quando escuta aqueles até então calados, devido suas vulnerabilidades “invisíveis”) à favor de um Brasil mais igualitário e sem divisões, como é esse paradoxo. Ainda que sua pressa em produzir mais e mais a conduza pelo tom prolixo, a realizadora consegue olhar entre as frestas, abordando o intimismo do micro para desvendar o macro. Em seu mais recente documentário, “A Mãe de Todas as Lutas”, Susanna embrenha-se na Terra, um Ser Feminino, optando pela narrativa sensorial. Uma sinestesia teletransporte. Uma possibilidade de reviver um passado traumático. Uma ferida aberta que está longe de ser curada.
“A Mãe de Todas as Lutas” é também uma metáfora a Mãe Terra, a matriarca que cuida de nossos corpos. Que nos alimenta. Mas que este novo milênio a trata como se fossemos filhos mimados a Nutella, batendo a porta do quarto com o clichê “Eu te odeio”. Contudo, nossa Mãe não desiste e insiste que nos tornemos melhores, fortalecendo a potência do adubo de nossas energias positivas. Cada ação destruidora mata um pouco mais nossa Mãe. E este filme é também uma ode-luta ao olhar feminino, pelas memórias diretas de Shirley Krenak e Maria Zelzuita, que, com suas trajetórias, potencializaram o “front da luta pela terra no Brasil”. Uma traz a missão de honrar as mulheres e a sabedoria das Guerreiras Krenak (antigamente conhecidos como Botocudos, Aimorés ou Borun, e autodenominados Gren ou Kren). A outra, uma das sobreviventes do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. As duas guerreiras amazonas “Mulheres-Maravilhas” buscam “des(machinizar)” o conceito da violência e apropriação do corpo feminino.
O longa-metragem, que estreia hoje no Canal Curta! (dia 13, será este outro sinal numerológico de esperança?), acontece por conversas, tempos observacionais da natureza, muitas imagens de arquivo (a maioria do Museu do Índio, provando por a mais b a importância da preservação das cinematecas e dos centros que abrigam arquivos históricos), as manifestações dos indígenas em Brasília (que muitos traduzem subjetivamente como “luta exótica”). Aqui neste documentário, a sensação causada é de se adentrar em um portal psicodélico, onde o Ayahuasca é imagético. Há uma epifania que faz com que retornássemos a nós mesmos. Quando ouvimos os lamentos, quando nos solidarizamos com as violências sofridas, quando nos chocamos com o quão cruel pode ser o humano e o “trem estuprador”, quando nos damos conta que nossa liberdade do agora está longe, já perdeu a esperança e até deixou de ser utópica. “Que tipo de adubo você quer ser para a Mãe Terra?”, pergunta Shirley Krenak. Sim, o que precisamos mudar para termos um um futuro possível?
“A Mãe de Todas as Lutas” sabe muito bem que não encontrará respostas e porquês. É tudo tão complexo aos olhos dos daqui, que cria a confusão do óbvio nos olhos de lá. Ao ouvir a mensagem (dirão alguns “ultrapassada”, de “disco arranhado”, “cadê o futuro?”, “ué, eles não têm celular, então para que querer um pedaço de terra”, “acho isso tudo muito oportunista, também quero esse osso fácil”), nós, que ainda acreditamos que há futuro possível, internalizamos o paradoxo. Correr mais para recuperar a calma. Por exemplo, esta crítica é pensada ao coral musical de crianças indígenas “Nande Reko Arandu” da Memória Viva Guarani (disponível no Spotify e no Youtube – ouça aqui), cuja esta personifica o som de um povo. Quando Susanna Lira “liga” o microfone, consegue ainda ir além: perpetuar memórias e viajar por nostalgias presentes de lembranças passadas. Talvez o sentimento emocional que nos é transmitido seja porque há um estrangeirismo “Believer” respeitoso no olhar. Essa curiosidade desperta a força não do dentro, mas sim de fora. Um guia-renovação para nos acordar do coma catatônico em que vivemos, dominados e mutilados pelas ordens consumistas da economia. “A Mãe de Todas as Lutas” é um tutorial para melhorar seu adubo. Um Tik-Tok da Mãe Terra. Vamos dançar para a chuva e para o sol!
“Estamos experienciando a febre do planeta; a Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho.”, diz Ailton Krenak, escritor, ambientalista e líder indígena, em entrevista a Anna Ortega, do Jornal da Universidade UFRGS, em 12 de novembro de 2020. “É a ideia do Antropoceno [teoria de que as ações humanas mudaram profundamente o funcionamento do planeta e que isso constituiria uma nova era geológica]. Então, se o pensamento dos seres humanos acerca da vida aqui no planeta ficou tão atomizado ao ponto de nós ameaçarmos as outras existências, a Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho. Gaia é esse organismo vivo, inteligente, e que não vai ficar subordinado a uma lógica antropocêntrica. Ele dispensa a gente. Essa compreensão parece uma ideia mágica, romântica, mas muitos cientistas consideram a Teoria de Gaia [a ideia de que a Terra é um organismo vivo] ser real. Inclusive, os eventos que estamos passando agora são indicativos de que esse organismo está reagindo. Estamos experienciando a febre do planeta.”, conclui.