A Luz no Fim do Mundo
O que é moral e o que ética?
Por Fabricio Duque
O cinema é essencialmente construído por sensações despertadas. O espectador precisa sentir para que possa despertar o gatilho da imaginação, ativando assim sinapses da ficção. Outra questão importante é que ao assistir um filme, as personagens retratadas são seres humanos, que espelham comportamentos semelhantes aos nossos e reproduzem hipérboles-estereótipos de nossa sociedade (que se retroalimentam de opiniões condicionadas do próprio senso comum).
Os filósofos, o francês Jean-Paul Sartre (disse em sua máxima “o inferno são os outros”) e o alemão Arthur Schopenhauer (“o mundo é um pêndulo temporal”), já tentaram ajudar na definição figurativa dos homens, um pelo existencialismo, o outro pelo pragmatismo, “caracterizando o mundo fenomenal como o produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica”. Sim, o preâmbulo consegue traduzir a premissa do novo filme de Casey Affleck (agora realizador, ator de “Manchester à Beira-Mar“), “A Luz no Fim do Mundo”.
O longa-metragem conduz sua narrativa por uma contemporaneidade pós-apocalíptica, de um mundo que regrediu a reações primitivas. Uma distopia compactuada que discorre sobre quatro temas interligados: a misoginia, o machismo, a sobrevivência e o amor. A trama nos apresenta o anti-progresso, uma inversão de valores debatidos entre moral e ética. “A Luz no Fim do Mundo” pergunta retoricamente a seu público: “Qual a importância e necessidade do indivíduo enquanto integrante social?”. A resposta não poderia ser mais peremptória.
O filme é um estudo de caso que analisa a “jornada aventureira do amor”, este sentimento incondicional de um pai por sua filha, que luta contra todos para a salvar de seus malfeitores. É também uma intimista reflexão de um agora que cada vez enaltece cruéis egoísmos, agressividades, sadismos e violência gratuita, tudo pela sensação do poder. De “fortes” vencendo “vulneráveis” por causa do medo da “praga feminina”, um vírus que atinge e devasta mulheres. A solução às que sobraram: eliminá-las para “proteger” os que ficaram.
“A Luz no Fim do Mundo” nos leva a referências, como o seriado “Handmaid’s Tale – O Conto da Aia” (sobre mulheres que perderam seus direitos), estrelado por Elizabeth Moss, que também integra o elenco do filme em questão aqui. E/ou “Um Lugar Silencioso”, de John Krasinski. São obras que se pautam na figura do faroeste, em uma terra sem lei, que a vontade de um pode embasar a retirada da liberdade do outro.
Sua narrativa, que fornece veracidade às cenas sem perder o equilíbrio, quer a suspensão do tempo, costurando esperas de perigo iminente e instantes de tensão com tom de introspecção mais caseira, como histórias metafóricas contadas, que ensinam a se proteger e que protegem a própria vida com a fantasia real da verdade. Há um misto (sem humor pastelão, tampouco espirituoso) de “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, com a dureza sobrevivente de “Capitão Fantástico”, de Matt Ross. É um drama de vidas em uma “viagem” pela paz e dignidade.
“A Luz no Fim do Mundo” é uma fábula realista político-social envolta na atmosfera fria e congelante das montanhas. Dois protagonistas desenvolvem o tema: um pai (Casey Affleck, o próprio diretor) e uma filha (Rag, interpretada pela atriz Anna Pniowsky). De um lado, a rigidez como artifício máximo de salvamento, do outro, uma garota que precisa se desconstruir para encontrar seu futuro incerto, à moda de “Game of Thrones” com “O Regresso”, de Alejandro González Iñárritu, e “Guerra dos Mundos”, de Steven Spielberg.
O longa-metragem é também sobre a metáfora do amadurecimento. Sobre a obsessão machista de sempre enxergar o sexo feminino como frágil e como objeto de satisfação. Sobre o poder testosterona de conflitar no outro uma medição de forças. “A Luz no Fim do Mundo” é uma parábola sem fim, que continua assim como a vida e como nosso tempo, perguntando-se qual será as limitações do próximo futuro e qual será o “resgate” da nova intolerância? É um estudo antropológico de um tempo que tende mais a sua derrocada e por escolha dos próximos membros ativos e altivos da própria sociedade.
Nós somos convidados a sentir na pele a ação de nossos próximos. De assistir com lente de aumento uma alienação despreocupada, à moda das obras literárias do português José Saramago, como “Caim”, por exemplo. E a questionar o porquê de tanta raiva. Se cada um olhasse apenas para a própria vida… “A Luz no Fim do Mundo” é sobre moral e ética, nossas de cada dia.