A Fratura
O diagnóstico é preocupante
Por Pedro Mesquita
Festival de Cannes 2021
Um dos maiores filmes da história do cinema é o clássico de Jean Renoir, “A Regra do Jogo” (1939). O filme satiriza a burguesia francesa às vésperas da Segunda Guerra Mundial, destacando, por diversas vezes, o comportamento violento das personagens. Em uma das cenas, as vítimas dessa violência são coelhos que habitam os quintais do castelo onde o filme se passa; os convidados do castelo participam de uma sessão de caça e Renoir nos mostra, de maneira muito seca, a execução impiedosa dos coelhos.
Aquilo que era concreto no filme de Renoir torna-se metáfora no mais novo filme de Catherine Corsini, “A Fratura”, quando uma das personagens diz que foi baleada “como se fosse um coelho”. Aqui, fica claro que o filme tratará, assim como “A Regra do Jogo”, do tema da violência, mas sob uma outra perspectiva: pelo lado dos trabalhadores, aqueles que muitas vezes são vítimas da violência do Estado Burguês.
Outro detalhe nos faz lembrar o filme de Renoir: assim como “A Regra do Jogo”, “A Fratura” se passa predominantemente numa só locação. Porém, em vez de se situar num castelo, ele acontece praticamente todo dentro de um hospital de Paris. As personagens não são convidadas de uma festa; elas vão parar ali por terem se machucado e precisarem de tratamento. Raf (Valeria Bruni Tedeschi) é uma mulher de meia idade, artista, que quebra o braço ao tropeçar na rua enquanto perseguia sua companheira a fim de convencê-la a retomar a relação; Yann (Pio Marmaï) é um caminhoneiro que toma um tiro de um policial em uma das manifestações dos gilets jaunes (coletes amarelos).
O filme busca retratar, portanto, eventos recentes no cenário político e social francês: a emergência dos coletes amarelos e a série de protestos por eles organizados ao longo do país. Vemos as ruas de Paris interditadas, onde ecoam as palavras “Macron, démission!” por parte dos manifestantes. É nesse momento que Yann, ao provocar um policial, é atingido por uma bala e acaba parando no hospital.
A partir daí, o filme redireciona o seu foco das ruas para o ambiente fechado do hospital, onde ficaremos por quase todo o resto da projeção. Ele funciona como um microcosmo da sociedade francesa: encontramos personagens das mais diversas origens, ocupações… com a característica em comum de serem todos trabalhadores, a mercê do sistema de saúde francês, retratado como falho e carente de investimentos (Corsini chega a bolar uma personagem, a enfermeira Kim, que, trabalhando muito além da sua carga horária, serve de símbolo desses problemas).
É ali, na sala de espera do hospital, que Raf e Yann se conhecem e, de imediato, tomam antipatia um pelo outro. Ela é vista por ele como um daqueles jovens da “geração de 1968” que se acomodou com os rumos do país e deixou de protestar; já ele é visto por ela como um idealista ingênuo. O filme desenvolve o conflito entre os dois sob um tom cômico bastante exagerado, à maneira das comédias screwball da Hollywood clássica. À medida que debatem sobre os rumos do país, eles têm de passar por uma série de situações absurdas proporcionadas pelo ambiente caótico do hospital, como auxiliar uma mulher no trabalho de parto ou até mesmo convencer um paciente mentalmente desequilibrado a soltar a faca com a qual ameaçava uma enfermeira.
Esse lado cômico do filme tem sucesso, embora não realizado no seu máximo potencial: se Bruni‑Tedeschi e Marmaï estão ótimos como o dueto principal do filme, conferindo às suas falas o ritmo e a intensidade adequadas para o gênero, o trabalho com a câmera não é assim tão digno de louvores. Corsini opta por uma câmera sempre próxima aos objetos filmados, que pouquíssimas vezes se aproveita da fisicalidade das atuações enquadrando os atores juntos num mesmo plano; ela prefere filmar cada pequeno evento separadamente da maneira mais segura possível e juntá-los posteriormente na montagem. Estamos longe do trabalho de câmera meticuloso de Renoir em “A Regra do Jogo”, que envolvia planos-sequência filmados em profundidade de campo e planejados nos mínimos detalhes; em “A Fratura”, a falta de pensamento sobre a etapa de filmagem faz com que a encenação de cada momento do filme seja a mais genérica possível, o que minimiza o bom trabalho dos atores.
O lado mais dramático do filme também é apenas parcialmente bem sucedido. Não temos dúvidas quanto à intenção do filme de denunciar certos problemas sociais da sociedade francesa; eis um filme inegavelmente progressista. Mas a dramaturgia se torna grosseiramente simples toda vez que os realizadores decidem advogar em favor de alguma causa que julgam necessária. O que dizer dos minutos finais — quando Yann decide escapar do hospital para trabalhar, mesmo machucado, e se acidenta novamente —, filmados com a obviedade tautológica de uma cautionary tale sobre a importância dos direitos trabalhistas? Ou do plano final, fixado na expressão de tristeza de Kim, cujo impacto dramático beira a nulidade pelo fato da personagem permanecer, ao longo de todo o filme, unidimensional, servindo como mero símbolo do trabalhador explorado?
“A Fratura” não é o filme político que ele tanto almeja ser. Ainda assim, os seus prazeres não passarão de todo despercebidos pelo espectador: as suas inclinações ao screwball e à comédia romântica — executadas por um bom elenco — lhe resguardam um pouco de frescor.