A Filha do Pescador
Restauro por entre as fissuras
Por Paula Hong
A acepção de uma identidade em sua completude significa para muitas pessoas LGBTQIA+ o abandono. Para muitas delas, a liberdade de colocar-se no mundo como são afasta os vínculos embrionários de toda uma vida; é preciso deixar para trás a velha noção de si para acomodar a nova. Em “A Filha do Pescador”, as águas da ilha La Aguja são as responsáveis por trazer para superfície da ilha e para a vida de Samuel (Modesto Lacen) um passado enterrado no fundo do oceano. A água que lhe traz o sustento é a mesma que lhe obriga a enfrentar a amargura e as arestas que solidificaram a sua solidão, acrescentando correntes de ondas que se renovam a cada aterrissagem nas areias da ilha. Com isso, o filme utiliza-se do reencontro entre pai e filha para explorar, de um lado, a resistência conservadora do primeiro, e as sucessivas tentativas de aceitação da segunda.
Samuel, exímio mergulhador e pesqueiro, nutre uma vida solitária que é demarcada pelo isolamento da ilha. Embora o oceano signifique a possibilidade de expandir sua noção de mundo, é na solidez da areia e nas paredes velhas de sua humilde casa que o homem finca suas raízes. De lá, nunca sai, como afirma um dos homens do local. A contrastante rispidez de suas palavras acolhedora com Miguelito (Jesús Romero), filho de um colega, e a leveza corporal de seus mergulhos, com a pele marcada pelas horas de exposição ao sol, fazem de Samuel mais um dos homens que habitam a ilha; na dinâmica homogênea entre eles, só há espaço para convivência respeitável com quem é como eles.
Por isso, a recepção que Priscila (Nathalia Rincón) recebe de seu pai, Samuel, é demonstrada através de uma violência que se estende do verbal ao físico em cenas que expressam tensões acumuladas de anos, sempre trazidas à tona por pedaços de um passado em comum rememorado com rancor e culpa, e que são pacientemente colocados abaixo por Priscilla — tanto por necessidade de sobrevivência quanto para reivindicar um espaço que lhe pertence. Como sempre, cabe à pessoa LGBTQIA+ ter de fazer o trabalho de “desconstrução” de muros que a separam de criar e sustentar laços comuns, mas que lhe são constantemente negados, exigindo mudanças que não cabem mais e que, mesmo assim, tem de ceder. Jácome transfere as dificuldades de sobrevivência de pessoas trans do macro, fora da ficção, para o micro daquela ilha, onde as interações são mais regradas mas não menos intensas, amostras do que Priscila enfrenta fora dali.
Ela é, de fato, “A Filha do Pescador”. Não há muitas informações sobre ela. Atrelado à trama que justifica seu retorno à ilha, é preciso fazer o trabalho de juntar as peças do quebra-cabeça espalhadas pelo filme que remontam seu passado, sua vida, sua personalidade, e um acúmulo de experiências que ora repelem, ora aproximam Samuel. Através dessa convivência, Samuel é constantemente obrigado a combater e superar um passado não resolvido, preso a memórias de relações que não existem mais, e agora apresentado, mas não sem resistência, com a possibilidade de renovação dessas relações, desses laços. Uma pena que Priscila é quem carrega tal tarefa nas costas, pouco a pouco, com reações à altura ou combativas às de seu pai, além de ter que lapidar com cautela um terreno que seja sustentável de conviver com os outros homens da ilha. Para chegar lá, precisa enfrentar ciclos de abusos, chantagens e violência.
Priscila demonstra um certo tipo de resiliência incômoda a quem assiste. Em “A Filha do Pescador”, a “conquista” de finalmente receber migalhas de apoio do pai vem de orquestragem com riscos de uma vulnerabilidade acessada por constantes embates, mas que aos poucos amacia a aspereza grossa que reverte Samuel. A câmera os registra de uma forma mais testemunhal, alternando entre proximidade e distância, com planos que trabalham no macro e micro das movimentações na limitada localização da ilha. De todo modo, o filme junta-se a uma gama de filmes LGBTQIA+ contemporâneos que trabalham em torno das dificuldades que levam ao restabelecimento de relações antes machucadas, mas que se curam nas tentativas de inserções nas fissuras que permanecem. Nesta co-produçãoBrasil-Colômbia, Jácome, acompanhado de excelente atores, conjura uma obra organizada para um desfecho que pode se assemelhar a uma mera gota no oceano de experiências LGBTQIA+, mas que, por intermédio das fontes da realidade, vislumbra e projeta recomeços que podem respingar fora das telas.