A Felicidade das Pequenas Coisas
O simplório ato de ofertar uma canção
Por Bernardo Castro
Festival de Cinema de Londres 2021
Uma das surpresas dessa edição do Oscar e um marco para o cinema asiático, que vem ganhando notoriedade na premiação ao longo das últimas edições, é “Lunana: A Yak in The Classroom”, que recebeu o título “A Felicidade das Pequenas Coisas” em português. Carregando a responsabilidade de ser o primeiro a representar o país mais feliz do mundo no prêmio, o diretor Pawo Choyning Dorji conta a história de Ugyen Dorji, um professor do governo que aspira ser cantor na Austrália. No entanto, ele vê suas aspirações frustradas, ironicamente, pelo programa de Felicidade Interna Bruta, que garante educação de qualidade para todas as comunidades da nação, forçando-o a passar seu último ano de serviço obrigatório em Lunana, a comuna mais remota da remota nação.
Em meio ao bucolismo da inóspita e insólita Lunana, Ugyen redescobre os seus princípios e aprende a se contentar com aquilo que a vida oferece e com a impossibilidade de escapar dos laços inextrincáveis do destino. Imbuído de forte influência do ideal butanês e das filosofias e religiões orientais, o longa traz à tona uma realidade distante do público geral, possibilitada pelo avanço da tecnologia, dos meios de comunicação e da magia do cinema, que desde os primórdios foi responsável por aproximar culturas através da etnografia visual.
Não é ousado dizer: um dos aspectos que mais atrai o apreciador médio é a beleza magnetizante da fotografia. Rico em planos abertos arrebatadores, que retratam a formosura inefável do país montanhoso, captando inclusive os imponentes Himalaias, o filme prende a atenção com uma facilidade abstrusa, valendo pela vastidão dos vales imaculados, rios e céus límpidos, com a cadeia de montanhas ao fundo – felizmente, a experiência do realizador com fotografia foi de grande utilidade na tarefa de representar a graça inata de seu país.
A história também não deixa a desejar. O arco de rendição do personagem principal, perpassando diversos debates filosóficos, faz o público sair da sessão de cinema diferente. Mesmo sem a pretensão de ser, ele é uma lição de vida. Ensina a apreciar as pequenas coisas e se contentar com aquilo que se tem. Ensina que, nem sempre, o que que se almeja é aquilo que se precisa – e que o que se pensa almejar não é necessariamente o que, de fato, se almeja. É uma aula de ancestralidade e de preservação das manifestações culturais autóctones, em contrapartida com o mundo globalizado e neocolonial do século XXI.
Esta, inclusive, é a principal crítica de “A Felicidade das Pequenas Coisas”. Ugyen, vivendo em uma cidade grande e com a mentalidade global e expansionista da população jovem do país, começa o filme como um negacionista veemente. Douto em inglês e apreciador da cultura norte-americana, ele constantemente é visto abdicando dos valores locais e do apreço pelo nacionalismo – a infame “síndrome de vira-lata”. De certa forma, pode ser interpretado também como uma autocrítica do próprio cineasta. Filho de diplomata, ele morou boa parte de sua vida fora do Butão, inclusive cursando a universidade nos Estados Unidos.
Em nenhum momento, porém, parece uma propaganda governamental forçada, mesmo que realce o ideal institucional do país. Dá-se a entender que é mais uma expressão do sentimento geral da própria população ou uma ode à rica cultura butanesa e dos povos do leste asiático. A supracitada influência do budismo e de filosofias orientais é percebida pela abundância em simbologias: o iaque ganha uma roupagem quase mitológica e serve de analogia para a pureza de coração, assim como a incólume paisagem dos montes, pouco afetada pela ação humana. Há também uma série de quebras de estigma: mesmo em uma comunidade tão isolada, as crianças são instruídas na língua inglesa, que é falada por grande parte dos personagens.
“A Felicidade das Pequenas Coisas” tem êxito em colocar o país nos holofotes do mundo e prova o motivo pelo qual merece a indicação à estatueta mais visada do mundo. Para os amantes da sétima arte, é interessante observar a presença do cinema asiático contemporâneo, que finalmente vem recebendo o reconhecimento merecido pelos festivais de maior renome, por mais que já tenham grande tradição e representantes que, a exemplo de Kurosawa, Ozu e Jia Zhangke, revolucionaram e fundamentaram aspectos essenciais da linguagem cinematográfica. Essa é uma vitória não só para o cinema oriental, mas para todos os cinemas fora do eixo Europa-Estados Unidos.