A Delicadeza é Azul
A cor que cura
Por Fabricio Duque
O que faz alguém ser normal? O que é normalidade, afinal? Como padronizar comportamentos tão subjetivos e com tempos tão diferentes? O documentário “A Delicadeza é Azul” (2019) aprofunda essas questões, trazendo à tona a autoanálise do que é ser um ser humano enquanto indivíduo social, “jogado” em um mundo de hostilidade compartilhada, uma selva darwiniana, apenas por apresentar sinapses em ritmo não “ajustável”. O autismo, nominado atualmente como Síndrome do Espectro do Autismo, ressignifica a ideia de existência. De se estar entre próximos. De se relacionar com a necessidade de adaptação dos próprios sentidos em contato a outros sentidos não tão “compreendidos”. Uma das características intrínsecas (não dignas, tampouco construtivas) de arquétipo antropológico do ser humano é o julgamento. De observar e automaticamente formular um padrão mental, dependendo da influência do meio em que se vive.
“A Delicadeza é Azul”, realizado por Yasmin Garcez e Sandro Arieta, traduz-se pela informação técnica-científica; pelo cotidiano sensorial; pela citação de Clarice Lispector no livro de crônicas “A Descoberta do Mundo” (e o “azul inalcançável”, cor que representa a luta a melhor aceitação do autismo); pelo acompanhamento orgânico de suas personagens; e pela estrutura clássica Talking Heads (de “cinema verdade”) de pais, artistas e médicos. O filme é um recorte-anamnese com a finalidade de rebater mitos e oferecer uma nova perspectiva-olhar desses seres “diferentes” e tão incompreendidos. O cantor Ney Matogrosso, um dos depoentes na categoria música, que evoca nossa inferência a “Matrix”, diz que a “realidade é uma ilusão provocada pelos nossos sentidos que não são totalmente exercitados”. Sim, talvez todos nós sejamos mesmos “reféns-prisioneiros” de um complexo processo cerebral, cujos sentidos podem manipular nossas percepções mais etéreas e invisíveis.
Se o real não existe, então o tempo de cada coisa também é uma invenção pré-programada de “excessos de pensamentos”. Uns conseguem controlar mais naturalmente, outros não, conseguindo apenas “privilegiar um estímulo sensorial por vez”. O documentário almeja quebrar os paradigmas da normalidade, doutrinados por um conservadorismo familiar que não quer transpor as barreiras de uma convivência orgânica com os “faltantes” de uma “flexibilização do comportamento” em “comportamentos estereotipados e de busca ao desequilíbrio”. Todos sofrem. A mãe “especial”, o pai “que não tem o direito de morrer”. E o portador da síndrome (“Não é uma doença, são apenas desafios a mais”), que fica no meio do fogo cruzado entre preconceito e desatenção (“o biológico se mistura com o ambiente”). ”A forma é um modo de ser diverso da maioria das pessoas”, diz-se.
“A Delicadeza é Azul” desenvolve sua narrativa, um documento informativo de cunho social (como uma campanha do Ministério da Saúde), por fragmentos caseiros e de definições-expressões; por um didatismo mais acadêmico. Nós percebemos nitidamente que é um projeto pessoal de seus diretores e, assim, como consequência inevitável, o tom mais ingênuo ganha importância. Ao atravessar a intimidade (constantes super-close) em busca da espontaneidade mais verdadeira e/ou quando a paleta de cores é mudada para metaforizar visualmente uma sensação (de um “cromatismo de uma cor só”) e/ou a câmera subjetiva-espreitada que potencializa o som, tudo desnivela a própria condução, especialmente pelo artifício estético que não embasa o seu uso, para logo em seguida abordar outra questão: o ambiente escolar “que reproduz desigualdades sociais” e suas “pessoas com valores”. “Uma nova humanidade”, discursa um educador, entre os conceito de “dar” e de “precisar”.
Em um estudo científico, foi comprovado que a cor azul é a favorita de 45% pessoas no mundo e a mais popular em todas as civilizações. É associada à calma, simpatia, harmonia, fidelidade, autonomia, conservadorismo, responsabilidade, maturidade, confiança, segurança, proteção, mas também frieza, tristeza, depressão e é a cor de todas as virtudes intelectuais: sabedoria, inteligência, ciência, controle, concentração, independência, e a de que mais nos rodeia. “A Delicadeza é Azul”, amplia nosso senso de tempo e corrobora a própria humanidade como união, visto que qualquer um sente infinitas e inexplicáveis sensações por micro-segundos no decorrer de um dia. Então, qual o motivo de encaixar pensamentos em uma forma maquinaria-algorítmica?
No filme “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, nas cenas finais é dito que “É o julgar que nos derrota”. Sim. Quando podamos a liberdade de alguém, o limitamos. E algo limitado não sobrevive por muito tempo. Acaba morrendo ainda em vida, tornando-se zumbis modernos com disfunções psico-físicas. O espectador vê a importância urgente de se abordar a problematização social do autismo. O documentário tem esse papel: o de abrir um diálogo. De apresentar causas e soluções. E de conversar no mesmo nível de seu tema. Dessa forma, o longa-metragem cumpre sua missão. Informa, indica perspectivas paralelas-plurais e se utiliza da própria inocência (uma delicadeza hipersensível) extraída para construir um universo metafísico ao público, indivíduos humanos e seres cidadãos.