A crítica porvir: Os filmes não realizados de Jodorowsky
Por Roberta Mathias
“Podemos ter esperança somente naquilo que é sem remédio. Que as coisas estejam assim e assim- isso ainda é no mundo. Mas que isso seja irreparável, que aquele assim seja sem remédio, que nós possamos contemplá-lo como tal- isso é a única passagem para fora do mundo. (A característica mais íntima da salvação: que sejamos salvos apenas no ponto em que não queremos não mais sê-lo. Por isso, nesse ponto, há salvação- mas não para nós).” AGAMBEN, 1990
Esse trecho escrito por Giorgio Agamben em “A comunidade que vem” poderia dar início a um texto sobre política ou sociologia. Poderia falar do tempo do agora, esse que temos vivido e percebido em sua total erupção. No entanto, o que pretendo fazer aqui é utilizar a ideia “do que está para chegar”, do que está em constante mudança para pensar em dois filmes incompletos da obra de Alejandro Jodorowsky. Dois filmes que poderiam ter mudado a direção – tanto em relação ao modo como o artista trabalha como diretor, como em relação à recepção do público ao trabalho de Alejandro.
O que venho tentando elaborar ao longo das últimas semanas durante a preparação do curso e, que quem acompanha os textos e reflexões sobre a obra como um todo do artista chileno que venho fazendo deve ter notado, é que penso que sua obra foi e é em território brasileiro demasiadamente subestimada. Poucos são os autores e críticos que se propõem a trabalhar com um diretor extremamente importante para filmografia latino-americana desde a década de 50 e que encontra-se vivo!
É de extrema urgência uma revisão sobre a obra deJodorowsky para pensarmos em possibilidades de uma filmografia latina que convoque ao transcendental. Transcendental lido sob os olhos de Agamben. Não estou nesse momento, nem falando sobre o caráter místico da obra do chileno, mas sobre o caráter inovador, do que quase chega, do que está porvir e para o qual, talvez, ainda realmente não estejamos preparados.
Sim, o que Jodorowsky convoca a chegar é uma visão holística da obra de arte como parte integrante do todo social. O que, sinceramente, cairia muito bem para a Latinoamerica nesse momento- há que se preparar!
Pensando nisso, comecei a elaborar uma crítica sobre as obras incompletas de Jodorowsky, aquelas que estão fora do mundo porque não foram apresentadas, mas se colocam em algum ponto do que Agamben chamaria de “salvação”- por não poderem ter qualquer tipo de leitura completa.
Não liguem se tomo para mim conceitos fora da área do audiovisual ou da arte. Esse é um convite surrealista para que vocês embarquem comigo na crítica de dois filmes não realizados. Aceitemos as contradições e digressões – que meus amigos teóricos mais rígidos não me leiam.
No livro “A Imagem-tempo”, de Guilles Deleuze, há uma frase que sempre martela em minha cabeça. “ …Se houvesse um cinema político moderno, seria sobre a seguinte base: o povo já não existe ou ainda não existe… o povo está faltando”. A base do pensamento deleuziano sobre cinema é que , por mais que um gênero ou diretor convoque ao novo, ao ainda não dito, ao amedrontador, pois não conhecido , é para o povo que esse cinema é feito- no sentido político.
De que nos serve um filme não visto? Um livro não lido? Uma exposição não contemplada- e, jamais, em momento algum em que utilizo essa palavra penso na contemplação distante, mas naquela que atravessa suas vísceras.
Esse cinema visceral (e, desculpem a repetição das palavras nas últimas críticas), é o cinema de Jodorowsky. Dado meu início um pouco apaixonado, posso partir para as “não críticas” de: “Abel Cain”, projeto de meados dos anos 90 e “Duna” projeto iniciado em 1975.
Começo por “Abel Cain: The sons of El Topo” por ser uma sequência de um dos clássicos do diretor: El Topo. Nessa sequência, um Jodorowsky já desiludido com a indústria cinematográfica (vejam bem, com a indústria e, não com o cinema) retoma o cenário construído em seu western-surrealista e convoca nomes de peso para protagonizá-lo. Inicialmente, o projeto seria protagonizado por seu filho Axel Jodorowsky , que morreu em 1989. Após paralisar a ideia por algum tempo, Alejandro volta a pensar em “Cain e Abel” que, agora, seriam interpretados por Marilyn Manson e Johnny Depp.
Meu exercício aqui é pensar o que poderia ter ocorrido com a carreira de Jodorowsky se ele houvesse lançado o filme em 2012, como planejado. Nessa ocasião, apesar de Marlyn Manson não ser mais o astro de rock do final dos 90 e início dos 00, a figura do vocalista ainda carregava o estranhamento necessário para fazer oposição a um Johnny Deep alavancado pela sequência “Piratas do Caribe”.
Jodo sempre gostou de trabalhar com atores “não convencionais” e é impossível dizer se o filme iria alcançar sucesso comercial, mas é bem possível que chamasse atenção por conta de seus protagonistas. Ainda que tenha sido lançada em quadrinhos em 2016, o projeto para o cinema nunca foi concluído. A história dos irmãos Cain e Abel visto sob o olhar do artista se passa com os filhos do protagonista original separados após a previsão de que um mataria ao outro. Sim, é uma releitura bíblica futurista/ pós –apocalíptica que seria protagonizada por Manson e Deep. Penso que iria, ao menos, provocar alguns olhares interessados e outros ouriçados. É claro que encaretamos bastante desde o início dos 00 e, hoje, não sei se o filme faria sucesso.
O segundo filme “porvir” de Jodorowsky foi concretizado, porém, não por ele, mas por David Lynch. Sobre o filme de Lynch, vocês podem ler um pouco na análise introdutória que Jorge Cruz preparou para o curso que daremos dia 7 de março em conjunto à Rosebud.
Novamente, meu papel aqui é fazer um exercício de imaginação sobre qual teria sido a visão de Jodo sobre a ficção-científica de Frank Herbert, a gigantesca saga de 544 páginas. Desde o início, o projeto de Jodorowsky foi extremamente ambicioso. Sem conter forças para montar uma equipe de qualidade, chamou o já parceiro Moebius (Jean Giraud) para desenhar uma espécie de storyboard de luxo contendo roupas, personagens, cenários. Esse já seria o quadrinho mais esperado de todos os tempos! (Novamente, desculpem a empolgação nerd).
A produção do filme, no entanto, pedia mais. Jodorowsky sabia a potência da obra que tinha em mãos e convocou: Pink Floyd para compor as trilhas sonoras elaboradas de acordo com cada planeta que Frank Herbert havia criado. Além disso, teríamos no elenco Salvador Dalí, Orson Welles, Gloria Swanson, David Carradine e Mick Jagger.
O filme de Jodorowsky, de acordo com o roteiro, teria 14 horas! No entanto, a grandiosidade do projeto, foi sua ruína. Após perder os direitos de Duna, David Lynch foi convocado para dirigir a produção que, finalmente, foi lançada em 1984.
Como boa benjaminiana que sou, gosto de pensar nos fragmentos e nas ruinas como possibilidades de criação. Gostaria de ver essas obras de Jodorowsky saírem do papel, mas talvez realmente ainda estejamos precisando de um espectador porvir.