A Assistente
Predador Invisível
Por João Lanari Bo
Telluride Film Festival 2019
“A Assistente”, lançado em 2019, primeiro longa de ficção de Kitty Green, é um filme minimalista, com pouquíssimas – ou nenhuma – cenas de impacto, quase nada acontece. Antes foram três documentários, entre eles “Ucrânia não é um Bordel”, de 2013, sobre a ativista ucraniana Inna Shevchenko, líder do movimento FEMEN, que costuma se manifestar topless contra ditaduras, religião e indústria do sexo. A australiana Kitty aprimorou nos documentários uma cuidadosa técnica de entrevistas, mergulhando nas rotinas banais desse difícil ofício que é a existência humana. Sua pauta era produzir algo sobre Harvey Weinstein, o produtor cinematográfico que se destacou como predador entre os predadores sexuais, atualmente detido no Centro de Tratamento Correcional, a unidade médica dentro da prisão das Torres Gêmeas, no centro de Los Angeles, enquanto aguarda julgamento por 11 acusações de estupro e agressão sexual. Em 2020, Harvey foi condenado a 23 anos de prisão em Nova York. Diante de tudo isso, a opção não foi fazer uma fita bombástica, ao contrário, outros o farão, com certeza – Plan B, produtora que tem Brad Pitt entre seus sócios, já tem esse projeto em desenvolvimento. Kitty entrevistou cerca de cem ex-assistentes e atuais, trabalhando em diferentes indústrias, inclusive a cinematográfica, e concentrou os resultados em uma única personagem, vista ao longo de um único dia no seu job de funcionária de uma mega produtora em Manhattan, Nova York. As entrevistas embasaram o roteiro: mais certeiro ainda foi o casting para o papel de Jane, a assistente. Foi escolhida Julia Garner, a atriz que roubou a cena em “Ozark”, série da Netflix – sua expressão de assistente recém-contratada é crucial para o filme, cada pensamento ou emoção que passa na sua cabeça, e que depois ela reprime, contribui para o build-up da tensão do enredo, minimalista e sutil, mas contundente.
Boa parte do material filmado é de close-ups onde vemos Jane pensar. O tempo todo com medo, mas resoluta. Seu antagonista, o produtor despótico, é uma forma invisível, alguém que se move em direção à próxima refeição, seja ela um pretexto ou uma refeição, de fato. Em um relance grosseiro, percebemos uma massa de ombro, envolta numa alfaiataria. Em outro, ouvimos uma voz intragável, admoestando Jane por ter aguentado a estupidez de sua mulher, numa queixa idiota sobre cartões de crédito – situação que o colega de gabinete, covarde e inescrupulosamente, passou para ela (na sequência, outro colega a ajuda na confecção de um e-mail para o chefe pedindo desculpas!). Mesmo nesses momentos mais crispados o tom é low key, Jane segura a onda. Tudo o que acontece – imagens, sons, sugestões táteis – gira em torno da assistente, é ela quem conduz a narrativa. Suas tarefas são fazer café, encher as geladeiras, imprimir os horários do dia, limpar migalhas de padaria, abrir correspondência. Ela chega cedo e sai tarde, está há pouco mais de cinco semanas no trabalho. Alguns detalhes parecem fora de lugar, uma mancha do sofá, um brinco no chão da sala do chefe – mas isso não é suficiente para derrubar um poderoso produtor. Por um tempo, “A Assistente” lembra a precisão amorfa e avassaladora de “Jeanne Dielman”, de Chantal Akerman, atualizado para a era do #MeToo.
Um ponto de virada, como dizem os manuais de roteiro, acontece, sutil como era de se esperar, mas decisivo. “A Assistente”, o filme, toma outro rumo: Jane de repente recebe a tarefa de levar uma jovem, uma nova assistente que acaba de chegar a Nova York, para o hotel. Então o chefe desaparece do escritório. Ele, o chefe sem nome e sem rosto. Procurar o diretor de RH da empresa é uma obrigação moral, quixotesca ou não. A cena entre ele e Jane é das melhores do filme. Na volta, funcionários que sabem o segredo aberto do escritório – a pulsão predatória do chefe – e optam pelo sarcasmo, se divertem: “eu não sentaria lá”, dizem, apontando para o sofá recém-limpo. Segundo a Wikipedia, mais de oitenta mulheres da indústria cinematográfica relataram que passaram por experiências de assédio, abuso ou estrupo com Weinstein.
Antes do escândalo, Harvey Weinstein havia recebido várias honrarias, como o de doutor honoris causa da Universidade de Buffalo, Comandante da Ordem do Império Britânico e Cavaleiro da Legião de Honra da França. A Universidade revogou seu doutorado, dizendo que sua conduta “contradiz o espírito de um doutor honorário”: a França iniciou em 2017 diligências para retirar o título da Legião de Honra; e, em 2020, o título honorário do Império Britânico foi cassado.