A 200 Metros
Se você se entrincheirar atrás de altos muros, seu inimigo vai procurar a solução em outro lugar
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2020
“A 200 metros”: é a distância que separa Mustafá, palestino residente na cidade de Tulkarm (também conhecida, em português, como Tulcarém), da sua família, a esposa Salwa, um filho e duas filhas. É também o título do filme que o palestino Ameen Nayfeh, natural de Tulcarém, dirigiu em 2020. Toda noite Mustafá sinaliza do terraço de seu apartamento, acendendo e apagando a luz, em sintonia com o celular, para a janela onde está a família. Por necessidade de trabalho, Salwa mora em Israel, a 200 metros do marido: de origem árabe, ela tem dois empregos e dispõe da nacionalidade israelense – como Salwa, são cerca de 1 milhão e 890 mil de cidadãos e cidadãs árabes em Israel, representando 21 % da população do país, estimativa de 2019. Tal como milhares de palestinos, Mustafá é um trabalhador estrangeiro free-lancer em Israel, no caso dele, pedreiro. Ele poderia mudar o status quo: você poderia obter uma identidade israelense!, insiste ela; não quero uma identidade israelense, reage no bate-pronto o marido. A rotina diária é pesada: os trabalhadores têm de passar todos os dias por uma fronteira tensa, checagem de documentos e revista corporal, uma situação de guerra. É uma humilhação: a pá de cal veio com a construção do muro que separa as duas comunidades – construído a partir do ano 2000, segundo Israel por razões de segurança depois da Intifada da década de 90. O muro se interpõe entre Mustafá e família, é visível de ambas as casas e impede a reunião familiar.
As razões por trás da separação da família não são explicitadas, sugerindo que para muitos palestinos tais situações são, apesar de tudo, normais – um normal opressivo, e suscetível de atos de violência arbitrários a qualquer momento. Naquela região, o século 20 foi atravessado por vários desses momentos: o marco principal foi a partição do território entre israelenses e palestinos decidida pela ONU em 1948, que traçou a fronteira, a chamada linha verde, mais ou menos onde foi construído o muro de 8 metros de altura. Mais ou menos, porque 85 % do muro foi construído dentro do território palestino, em vez de seguir ao longo da fronteira internacionalmente reconhecida em 1967, depois da Guerra dos Seis dias. No espaço onde “A 200 metros” forja seu enredo dramático, portanto, cada metro de território é objeto de disputa visceral e as distâncias são extremamente curtas: Tulcarém, por exemplo, tem uma localização central, 37 km apenas de Tel Aviv e 62 de Jerusalém. O combalido Direito Internacional mostra-se incapaz de regular as contendas nesse exíguo espaço, carregado de um tempo histórico de intensidade evidente – em 2004, a Corte Internacional de Justiça, principal órgão judiciário da ONU, emitiu uma opinião consultiva afirmando que a construção do muro é ilegal e deveria parar imediatamente, cabendo a Israel fazer reparações por qualquer dano causado. A recomendação, entretanto, não é vinculante e foi solenemente ignorada. O comprimento total do muro alcança 708 quilômetros, mais do que o dobro da linha verde: como foi construído em grande parte dentro do território palestino, isolou cerca de 9% da terra e 25 mil palestinos do resto dos compatriotas.
Mustafá – esplêndida atuação de Ali Suleiman, nascido em Nazaré e formado na escola de teatro de Tel Aviv, portanto árabe de nacionalidade israelense – descobre no checkpoint que sua autorização de entrada expirou: como é fim de semana, não pode renová-la imediatamente. Em seguida, recebe telefonema de Salwa – seu filho foi atropelado e está no hospital, do lado israelense. Não há tempo para burocracia, a opção é pagar 100 dólares por um lugar numa van, esconder-se na mala de um carro com placa israelense e atravessar a fronteira. A operação é arriscada, obviamente – e nesse ponto “A 200 metros” transforma-se num road movie, Mustafá e seus companheiros de travessia circulando nas colinas de Jericó e cercanias tentando, em último recurso, pular o muro. Com ele estão o jovem Rami, fã do craque Mohamed Salah, o “faraó egípcio” que joga no Liverpool: o militante e ator Kifah e sua namorada alemã Anne, cineasta com tendência a usar a câmera em momentos inoportunos, colocando o grupo em risco.
A atmosfera lembra, guardadas as devidas proporções, o clima de uma das mais intrigantes novelas kafkianas, aquela em que o agrimensor K não consegue entrar no castelo do conde que o chamou. Desta feita, entretanto, é um país – um país encastelado, do ponto de vista de quem está do outro lado do muro.