4X Nós do Morro
Um filme-evento de iniciação
Por Fabricio Duque
A máxima popular do “a primeira vez, a gente nunca esquece” pode e deve ser utilizado como parâmetro às obras do realizador non-stop Cavi Borges, carioca que nunca fugiu de uma boa luta e que cada vez “briga” mais pela existência do cinema independente. “4X Nós do Morro” é seu primeiro longa-metragem, em 2005 (tinha acabado de abrir a produtora Cavideo), uma “mistura de evento com filme”, a “primeira vez que tentou fazer um longa”), que dirigiu e produziu em parceria com Gustavo Mello.
Exibido na mostra paralela do Festival do Rio 2006, “4X Nós do Morro” também apresenta uma das características marcantes, que Cavi nunca perdeu, a de “eventualizar” seus filmes. É uma experiência que imerge o público em um documentário bastidores sobre os processos orgânicos (“mão na massa”) da preparação de um festival cinematográfico. Uma ocupação de quatro dias por quatro espaços culturais na cidade do Rio de Janeiro: O Cineclube Plano Geral da Universidade Estácio de Sá (primeiro dia), O cine Drive In da Cobal do Humaitá (segundo dia) e alguns ainda em construção, como o Cine Santa (funcionando dentro de uma Igreja Católica – o terceiro dia) e o Cine Buraco (em Laranjeiras – o quarto dia).
Com “4X Nós do Morro”, nós adentramos em um cinema ainda não definido, porque, na verdade, não sabemos mesmo o que é. Um novo formato de exibição? Uma possibilidade de diretores iniciantes mostrarem seus trabalhos em espaços alternativos por causa do funil mercadológico? Uma maneira de desconstruir o olhar da imagem? Uma revolução tendo a câmera como arma de transformação? Sim. Sim. Sim. E sim. O espectador encontra nesta indefinição uma liberdade. Uma pulsante e latente cinefilia que não permite que nada, nem ninguém, impeça que os sonhos possam ser realizados.
Aqui é também enaltecido o conceito de comunidade no Morro do Vidigal. União, família e respeito (para “prestigiar o evento”), perceptivos nas reações de seus moradores perante o convite ofertado (um a um – “a cultura bate a sua porta”), a câmera ligada e o cuidado de responder-tratar bem (o transporte gratuito ao dia do cineclube). Um digno e importante trabalho social. Em um misto de vergonha e vaidade, a verdade prevalece (com a gargalhada de Cavi, por exemplo, e/ou a frase típica “Vocês não são fáceis, hein!” – eu ouvia isso da minha tia na minha infância). E é essa sensação que faz o filme ser tão cativante. Não só por retratar histórias de vidas comuns (para nós) e “super-heróis” (para eles), mas especialmente por traduzir de forma livre e espontânea o coloquial comportamento, como a propaganda na rádio local e popular (“Cultura é com a gente”).
“4X Nós do Morro” é uma imersão. Uma análise antropológica. Um estudo social de relevância sobre vida e obra na favela. Assim, nós nos tornamos integrantes locais. Com metalinguagem na veia. Subimos o morro e somos convidados a sentir a aproximação. Então, ao decorrer, aprendemos mais sobre o grupo Nós do Morro, que desde 1986, “conta as histórias do cotidiano”. “O barato é viver a arte com desejo”, diz-se com afloramento. Em 1995, o curso de cinema foi instaurado com o “exercício do Eu”, de Cezar Migliorin (“Quando você faz com você, fica mais fácil entender o mundo”), de experimentar expressões “sem se sistematizar”. Ao lado dos professores Rosane Svartman e Vinícius Reis, com uma “televisão e um videocassete”, trazidos por Guti Fraga, o responsável pela levar a “luz” do cinema.
O segundo dia, na Cobal, exibiu nove curtas-metragens em um telão assistidos por mais de mil pessoas, permitindo que vidas pudessem ser conhecidas (personagens reais), como a de “Hércules”, o “transportador de tudo” da comunidade (“que não pode ver sua história retratada em tela”), e a de Luzanira Rocha, com um “casamento arranjado aos treze anos”. Sim, o cinema nunca morrerá, porque nunca deixaremos de ter histórias. E cada uma com sua curiosidade e notoriedade. Após, entrevistas a alunos e público, que lançam percepções.
Todos vivem uma garra de provar a excelência. De mostrar a qualidade de seus investimentos. Como a entrega total na peça “Sonhos de Uma Noite de Verão”, encenada no CCBB RJ (e com making-of captado em vídeo), complementado pelo depoimento de Babu Santana (do Nós do Morro, e agora na edição 2020 do Big Brother Brasil). Nós também podemos conhecer curtas passados, como “O jeito brasileiro de ser português” (2001), de Gustavo Melo. E ou “A Mina de Fé”, de Luciana Bezerra. Até mesmo em uma igreja que “virou cinema” para servir de exibição por uma modernista reverenda, que “quebrou” paradigmas para dizer que a “igreja é para falar também das coisas da terra”.
“4X Nós do Morro” desenvolve um hiato. E sete meses depois, Guti Fraga explica que o Vidigal é “poesia, igual ao filme “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti. Dessa forma, como conclusão, o longa-metragem representa um veículo de iniciação. Uma terapia de choque com a realidade, que simplifica a complexidade do fazer cinema com a força da paixão, que nunca deixa a peteca cair e a chama apagar. Todos nós somos Nós do Morro!