3 Antônios & 1 Jobim
Um Brasil de Antônios
Por Pedro Sales
O terceiro nome mais comum entre homens no Brasil, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é Antônio. No levantamento, que já tem mais de 10 anos, os Antônios do Brasil eram mais de 2 milhões e 500 mil. O nome cuja origem grega significa “inestimável” é dividido por quatro grandes figuras da história brasileira do século XX que fazem jus ao significado: Antônio Houaiss, Antônio Callado, Antônio Cândido e Antônio Carlos Jobim, ou simplesmente Tom Jobim. O diretor Dodô Brandão filmou, em 1993, um encontro entre eles. O resultado desta empreitada foi o filme “3 Antônios & 1 Jobim“. Na época, a versão possuía pouco menos de uma hora e um livro homônimo foi publicado com a transcrição do roteiro. Em 2017, uma reedição foi feita com vinte minutos a mais, com argumento de Bebeto Abrantes e roteirizado por ele e pelo diretor. O que se segue no longa é uma conversa enriquecedora com grandes intelectuais brasileiros, uma aula ao ar livre, em um almoço ou numa mesa de bar.
Na abertura, o jornalista Zuenir Ventura apresenta os personagens e elogia como são divertidos, “coisa rara entre intelectuais”. O mais desconfiado dos espectadores pode achar que é mera adulação de Ventura, no entanto, os minutos iniciais fazem justiça à fala do jornalista. Houaiss, o mais velho dos Antônios, foi um filólogo de origem libanesa responsável por nomear um dos mais tradicionais dicionários da língua portuguesa. Callado, o segundo mais velho, foi um escritor, jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Cândido, por sua vez, foi o maior crítico literário do país. E Jobim, o mais novo e conhecido entre os quatro, músico e compositor de clássicos como “Garota de Ipanema” e “Wave”. O quarteto, apesar da imensa bagagem de erudição e conhecimento, em momento algum deixa o público de fora da conversa. O clima de descontração permeado pela culinária, bom humor e eventuais bicadas em copos de cerveja, inclusive, funciona como um algo a mais que nos aproxima dos quatro, em uma intimidade proposta pela câmera, mas nunca forçada por ela.
“3 Antônios & 1 Jobim” é um documentário que consegue materializar o pensamento “como eu queria ser uma mosca para ouvir o que dizem”. Muitos professores, estudiosos e entusiastas da cultura brasileira se estapeariam só para terem o privilégio de apenas ouvi-los. Mas para aqueles que não conhecem os retratados e a dimensão e importância deles, o longa efetivamente estabelece um bloco de apresentação, de biografias. Os próprios Antônios se identificam, falam de suas trajetórias e origens em entrevistas individuais, conduzidas por Zuenir e filmadas em outros lugares que não a Chácara do Céu onde ocorre o almoço. Neste sentido, observa-se que a direção de Dodô Brandão se compromete em tornar a experiência acessível a todos. Em alguns momentos, aliás, quando os quatro se referem a amigos e outras personalidades, a montagem trata de inserir uma foto do referenciado. Um recurso formal simples e quase didático, mas que evita deixar o público perdido.
Após as apresentações, o longa se organiza em alguns eixos temáticos nos quais discutem o Brasil, política, amizade, influências estrangeiras e mulheres. A mudança de assunto acontece de forma fluida, afinal, é uma conversa. O mérito da montagem é inserir trechos das entrevistas que tratam do mesmo tema e alterná-los com o diálogo ao ar livre. Uma constante entre os quatro é o posicionamento político. Tom Jobim foi preso pela Ditadura Militar. Antônio Cândido escapou por ser professor de Letras – na visão limitada dos militares, ele não trazia “risco intelectual”. Antônio Callado teve seu quadro de Che Guevara apreendido. E Antônio Houaiss lê seu “prontuário” feito pelo DOPS e relembra orgulhosamente de ter estado na primeira lista de cassados pela ditadura. Quando questionou Castello Branco, recebeu a resposta de que foi cassado “para ter oportunidade de fazer a tradução de Ulysses” – livro, de James Joyce.
As amizades também ocupam papel central em “3 Antônios & 1 Jobim“. O músico lembra sua parceria com Vinícius de Moraes. O crítico literário, ao lado de seu amigo Décio de Almeida Prado e de sua esposa Gilda de Mello, se recorda da influência política de outro amigo, o crítico de cinema Paulo Emílio Gomes Salles. O escritor fala de Graciliano Ramos, e o filólogo de João Cabral de Mello Neto. A fluidez do papo permite que o filme não seja apenas um tratado antropológico sobre o que é o Brasil e conjecturas de como ele será. Essa parte existe, claro, porém, em outros momentos, riem, falam das paixões não consumadas e com uma leveza bem convidativa. No modelo dos curtas sobre outros grandes nomes da história do país, como Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, o documentário é um registro observacional precioso da vivacidade e sabedoria dos três Antônios e de Tom. É bem notável, entretanto, que a obra não pretende ser um mero registro acadêmico. Por mais que pareça uma aula, essa daqui é uma das bem divertidas, daquelas que, de tão absorto nas histórias, você lamenta quando o sinal toca. Dá vontade, inclusive, de acompanhar os professores com um copo de cerveja na mão e cantar “Com Que Roupa?”, de Noel Rosa.