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Ninguém Pode Saber

A Família Nuclear

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2004

Ninguém Pode Saber

Ninguém Pode Saber”, longa que Hirokazu Kore-eda completou em 2004, remete a um fato real. Em 1988, a sociedade japonesa chocou-se com a revelação do abandono de cinco filhos pela própria mãe, na capital do país. Largadas em um pequeno apartamento, as crianças tiveram que se virar sozinhas. Durante quinze anos, Kore-eda pensou e escreveu sobre o drama, até realizar o filme em 2004, um dos trabalhos cinematográficos mais contundentes sobre a implosão da família nuclear no Japão. Kore-eda é dos poucos diretores contemporâneos japoneses que logrou obter um segmento cativo no mercado internacional. A célula familiar japonesa – e as forças centrífugas que a ameaçam – consolidou-se como um de seus assuntos favoritos.

A formação de Kor-eeda no cinema seguiu caminho peculiar – nascido em 1962, estudou literatura na Universidade Waseda e trabalhou em uma produtora independente de documentários, “TV Man Union”. Depois de quatro anos como assistente, conseguiu gravar às escondidas material para seu primeiro filme, “Lições de um bezerro”, em 1991, sobre estudantes de nível básico criando uma vaca leiteira. O produtor gostou da espontaneidade das crianças, e promoveu-o a diretor.

No mesmo ano realizou “No entanto…”, sobre o “desastre de Minamata”, envenenamento de centenas de pessoas por mercúrio provocados por dejetos industriais, no sul do país. A “doença de Minamata” é uma síndrome neurológica cujos sintomas incluem distúrbios sensoriais nas mãos e pés, danos à visão e audição, fraqueza e, em casos extremos, paralisia e morte. Para abordar um assunto de tamanha sensibilidade, Kore-eda pinçou dois personagens que tomaram parte nos acontecimentos. Ambos cometeram suicídio: um funcionário da agência ambiental do governo, frustrado diante da dificuldade burocrática para agilizar pagamentos de compensação; e uma vítima, que teve a indenização suspensa. Tal como o anterior, o trabalho foi exibido na TV Fuji.

Em 1994, dirigiu “Agosto sem ele”, sobre o primeiro homossexual japonês a assumir publicamente ter contraído aids por meio do contato sexual. Kore-eda acompanhou durante meses seu entrevistado, sua rotina e seu estoicismo. Narrado pelo diretor, o documentário desconstrói com sutileza e emoção o estatuto de objetividade da linguagem documental. “Depois da vida”, seu segundo longa-metragem de ficção, lançado em 1998, é um exercício que articula estilo jornalístico a uma fantasiosa narrativa, vida após a morte. Recém-falecidos são entrevistados para elegerem os momentos mais gratificantes de suas vidas, aqueles em que realizaram seus desejos. Em seguida, o precioso instante é recriado em estúdio, devidamente cenografado, iluminado e interpretado. Memória e deleite.

E, em 1995, corresponde-se em Super-8 com a cineasta Naomi Kawase.

Ninguém Pode Saber” – a família, o grande filão do cinema clássico japonês, de Yasujiro Ozu e Mikio Naruse. Donald Richie é um dos críticos que escreveu belas páginas nesse diapasão (e não é coincidência seu apreço pela obra de Kore-eda). Inspirado nos fatos, o roteiro de “Ninguém Pode Saber” derivou para situações ficcionais, mantendo a estrutura básica dos personagens, mãe e quatro filhos de pais diferentes.

O principal mérito é a mise-en-scène. Centrada nas crianças, alinha falas e gestos improvisados dentro do ambiente claustrofóbico do lar, sugerindo uma estranha familiaridade com o que se passa em seu interior. No “casting”, outro achado: a cantora pop You, escolha inesperada para o difícil papel da mãe. E o filho mais velho, Akira, ator não-profissional como as demais crianças, ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2004.

O crítico Rojer Ebert definiu dessa forma o espaço dramático do filme:

Kore-eda cria uma sensação de intimidade dentro do apartamento. Ele fotografa perto das crianças (não há espaço para se afastar) e destaca sua claustrofobia. Elas gostam umas das outras, têm alguns brinquedos, comem mais ou menos o suficiente, geralmente menos. Um dia, Akira até tira os sapatos delas do armário e as deixa calçá-las, levando-as para um passeio no grande mundo aberto e livre, que lhes é tão indiferente.

Com esse filme, Kore-eda subiu de patamar e tornou-se um dos diretores mais respeitados no Japão. O tema do declínio da estrutura familiar seguiria como como foco prioritário em suas realizações. Em 2011 é lançado “O que eu mais desejo”, comédia que investe na bifurcação da família. Na separação, são dois meninos, um que fica com a mãe, e outro com o pai. “Pais e filhos”, de 2013, lida com a inesperada decisão a que se vê confrontado um homem de negócios bem sucedido, ao constatar que seu filho biológico fora encaminhado por engano a outra família (menos abastada e mais “informal”) na maternidade. “Nossa irmã mais nova”, de 2015, narra a chegada de uma meia-irmã ao convívio de três irmãs mais velhas, a partir da morte do pai comum.

5 Nota do Crítico 5 1

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